As más lições do projeto canadense de remuneração do jornalismo

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O jornalismo profissional tradicional passa por dificuldades há anos. Os grandes jornais sofrem com a diminuição de receita e com corte de profissionais. Pequenas redações são frequentemente obrigadas a encerrar suas atividades. Para fazer frente a essa crise e considerando a importância do jornalismo em sociedades democráticas, diversas propostas para garantir a sustentabilidade das redações têm sido apresentadas, dentre as quais aquelas que criam obrigações de remuneração de intermediários de conteúdo na internet.

As primeiras nesta linha foram as da Espanha e da Alemanha, e em 2019 a União Europeia aprovou uma diretiva, tão notória quanto polêmica, que ampliou a proteção autoral para garantir que plataformas digitais remunerem jornais – conhecida como Diretiva sobre Direitos Autorais no Mercado Único Digital.

A dificuldade dos países europeus em transpor a diretiva não desestimulou outros a tentarem criar mecanismos na tentativa de assegurar a receita de jornais. Projetos similares, que têm em comum partirem de um diagnóstico de que as plataformas são responsáveis pela crise do jornalismo, estão em tramitação no Brasil e nos EUA. Em 2021, a Austrália aprovou seu News Media Bargaining Code. No início de abril deste ano, foi a vez do Canadá apresentar o seu projeto de Online News Act.

A proposta canadense, cujo objetivo é “regular os intermediários de notícias digitais com o intuito de promover a equidade no mercado de notícias digitais do Canadá e contribuir para a sua sustentabilidade”, em muito se assemelha à lei australiana: o Online News Act estabelece um sistema de negociação para que plataformas remunerem jornais que, diferente do modelo europeu, independe do direito autoral. Três elementos da lei são destacáveis em seu objetivo de contribuir para a sustentabilidade do mercado de notícias do Canadá.

A primeira delas é a definição de jornais que fazem jus ao direito de remuneração por plataformas. O projeto do Online News Act remete à legislação tributária canadense para classificar as “empresas jornalísticas elegíveis”, que por sua vez determina quatro critérios nessa avaliação:

a produção de notícias de interesse público;
contar com 2 ou mais jornalistas;
operar no Canadá;
não limitar a produção de notícias a um tópico específico.

Essa definição confere o direito à negociação de remuneração tanto a jornais privados quanto públicos, nacionais ou estrangeiros. Por incluir jornais estrangeiros que apenas operam no Canadá, é possível questionar se a lei será eficaz em atingir seu objetivo de contribuir para a sustentabilidade do jornalismo nacional.

Ainda que o jornalismo produzido localmente venha a ser remunerado por plataformas, a incidência prevista na lei acaba por incluir também no direito à remuneração empresas jornalísticas multinacionais ou estrangeiras, independentemente da quantidade ou qualidade do conteúdo que produzem localmente – ainda que empresas multinacionais possam produzir jornalismo local de qualidade, como é o caso da BBC Brasil. Caso não haja uma forma de reverter parte desse dinheiro recebido por empresas multinacionais e estrangeiras ao desenvolvimento do jornalismo nacional, é válido se perguntar de que forma essa disposição efetivamente auxilia a incentivar o jornalismo local.

A hipótese de incidência dos direitos e obrigações contidos na lei é um segundo ponto crítico da proposta canadense. A incidência da lei ocorre quando um conteúdo jornalístico (tal qual já definido anteriormente) for “colocado à disposição”, o que inclui tanto sua reprodução integral ou parcial quanto a mera facilitação do acesso a esse conteúdo por quaisquer meios – incluindo a indexação, a agregação e o ranqueamento.

A definição extremamente ampla dessa hipótese de incidência pode incluir atos corriqueiros da internet, como o envio de links entre pessoas, e colocar em risco princípios básicos de seu funcionamento, incluindo a neutralidade de rede – princípio consagrado no Marco Civil da Internet, pelo qual o responsável pela rede deve “tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção”. Isso porque, dependendo da forma de implementação, poderia se tornar necessário distinguir os pacotes de dados que fazem referência a conteúdo jornalístico, para possibilitar a remuneração. Essa amplitude é especialmente preocupante considerando que a própria lei determina que o dever de remuneração não é afastado pelas limitações e exceções aos direitos autorais. Não apenas a linkagem a notícias específicas poderia configurar “facilitação de acesso”, como a linkagem às próprias homepages dos jornais poderia obrigar plataformas a remunerar jornais, colocando em risco a liberdade de expressão e de informação do público.

Finalmente, um terceiro ponto crítico da proposta canadense diz respeito a quem terá o poder de definir a destinação dos recursos pagos pelas plataformas aos jornais pela “facilitação de acesso a conteúdo jornalístico”. A lei essencialmente prevê que plataformas devem chegar a um acordo para remunerar jornais e que caso não o façam – independentemente ou em um processo de negociação supervisionado pelo Estado – a remuneração será definida em um procedimento arbitral encabeçado pela Comissão Canadense de Rádio-Televisão e Telecomunicações (CRTC).

Ainda que as partes tenham chegado a um acordo, a lei dá à comissão o poder de reavaliá-lo mediante solicitação de uma das plataformas (e não de jornais). O Online News Act apresenta uma série de critérios para que a CRTC faça essa avaliação, como o estabelecimento de uma “remuneração justa”, a garantia de que uma “parte adequada da compensação será utilizada pelas empresas de jornais para apoiar a produção de conteúdos noticiosos locais, regionais e nacionais” e de que o acordo beneficiará “uma parte significativa das empresas noticiosas locais independentes, contribuirá para sua sustentabilidade e incentivará modelos empresariais inovadores no mercado jornalístico canadense”.

Em outras palavras, caberá às plataformas demonstrar que o acordo a que chegaram com os jornais garantirá a produção de conteúdos locais e a implementação de modelos empresariais inovadores. À primeira vista isso pode parecer uma obrigação imposta às plataformas, mas em realidade se trata de um poder imenso que a lei confere a eles de interferir na produção jornalística. As plataformas não apenas poderão, como deverão, determinar como os jornais usarão os recursos pagos a título do Online News Act, colocando em sério risco a independência do jornalismo e a liberdade de imprensa.

Para além desses três pontos específicos da legislação, cabe também apontar uma falha importante em sua motivação e no efeito que seus mecanismos podem ter sobre a sua razão de existir. A proposta canadense tem como propósito equilibrar uma relação assimétrica na relação entre plataformas e jornais. Embora seja inegável que as Big Tech acumularam um poder descomunal nos últimos anos, alguns questionamentos são necessários.

Primeiramente, a despeito de seu objetivo declarado, é questionável se o Online News Act não irá aumentar ao invés de diminuir o poder das plataformas sobre os jornais, como já adiantado.

Em segundo lugar, é custoso – e apenas para poucas e grandes empresas – o processo de conhecer a lei, ter a capacidade de negociar no âmbito administrativo/judicial e pressionar por um bom acordo. Dessa forma, há o risco de que a lei favoreça grandes conglomerados de mídia, que têm poder para tal.

Em terceiro lugar, ainda que se aceite a premissa de que jornalismo esteja em crise em razão da emergência das Big Tech (o que não é algo dado), a lei cria obrigações às plataformas que suportam a circulação do conteúdo jornalístico, aumentam o acesso a ele e, assim, a possibilidade de os jornais monetizarem esse acesso. A questão é que não se dá a mesma atenção às plataformas que dominam o mercado de anúncios online e que, portanto, inibem essa possibilidade de monetização.

Nesse sentido, a criação de uma lei (ou a efetiva aplicação das leis já existentes) voltada às poucas plataformas que dominam o mercado de publicidade digital pode não apenas ser mais eficiente em garantir as receitas e a sustentabilidade do jornalismo profissional, como também proteger outros afetados pelo domínio de mercado dessas empresas nesse setor – a exemplo dos consumidores e de outras plataformas inovadoras e menores. Vale lembrar que essas grandes empresas, que dominam o mercado de publicidade digital, podem inclusive ser as controladoras das plataformas de intermediação de conteúdo por usuários terceiros.

A proposta canadense, à semelhança do News Media Bargaining Code que a inspirou, possivelmente servirá de referência aos legisladores brasileiros. O tema está sendo discutido no PL 2630/2020 – anteriormente conhecido como PL das Fake News – e que versa sobre regulação das plataformas digitais.

A proposta brasileira de regulação sobre remuneração de veículos de mídia está localizada em um único artigo, genérico, e deixa pouco claro como essa remuneração se dará na prática. Como vimos no caso canadense, a forma como a regulação ocorrerá não é mero detalhe para garantir a justa remuneração dos jornais e dos profissionais. Caso feita de forma apressada e sem a devida participação dos veículos, incluindo mídias independentes, e representantes de jornalistas, pode acabar concentrando ainda mais as verbas jornalísticas nas mãos de gigantes do meio, além de manter o modelo de superexploração dos profissionais e até afetar a liberdade de imprensa, por dar poder excessivo para as plataformas.

Nem tudo que é importado é bom. É importante que a eventual recepção do Online News Act enquanto parâmetro de política para a sustentabilidade do jornalismo não ocorra de maneira acrítica. Antes, é preciso se atentar para as qualidades e defeitos da proposta, em especial com vistas ao seu objetivo de promover a sustentabilidade do jornalismo a longo prazo.

É necessário que se leve em especial consideração a definição de empresas jornalísticas, a hipótese de incidência do dever de remunerar e o mecanismo de negociação entre as partes. Em conjunto com as especificidades do mercado jornalístico brasileiro em contraste com o canadense, esses elementos devem ser levados em conta na formulação de uma política nacional que busque garantir a sustentabilidade do jornalismo brasileiro.

HOUANG, André. A remuneração do jornalismo pelas plataformas: o que está em pauta?. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/remuneracao-jornalismo-plataformas-15062021 > .Acesso em: 20 maio 2022.

GEIST, Michel. Here Comes the Online News Act: Why the Government’s Media Shakedown is Bad News For Press Independence and Competition. Disponível em: < https://www.michaelgeist.ca/2022/04/here-comes-the-online-news-act-why-the-governments-media-shakedown-is-bad-news-for-press-independence-and-competition/ > . Acesso em: 20 maio 2022.

__________Taking Aim at Sharing News Online: Bill C-18 and the Government’s Misguided Requirement to Mandate Payment for Internet Linking. Disponível em: < https://www.michaelgeist.ca/2022/04/taking-aim-at-sharing-news-online-bill-c-18-and-the-governments-misguided-requirement-to-mandate-payment-for-internet-linking/ > . Acesso em: 20 maio 2022.

__________Just How Extreme is Bill C-18?: It Mandates Payments For Merely Facilitating Access to News. Disponível em: < https://www.michaelgeist.ca/2022/04/just-how-extreme-is-bill-c-18-it-mandates-payments-merely-for-facilitating-access-to-news/ > . Acesso em: 20 maio 2022.

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