A ascensão dos programas de recompra de ações e a disciplina da Lei das S.A.

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O mix de inflação, aperto nos juros e desaceleração da economia resultaram no pior primeiro semestre das últimas cinco décadas em Wall Street.

Em nossa Bovespa, o salto da Selic acima dos dois dígitos, associado às incertezas fiscais e políticas, explica o aniversário de quase um ano do último IPO (Oncoclínica em 09/08/2021).

A contraparte ao tombo das bolsas e o menor volume de ofertas tem sido o crescimento dos programas de recompra de ações.

Segundo dados do Goldman Sachs, publicados pelo Financial Times, as companhias americanas aprovaram um valor recorde de US$ 319 bilhões em recompra de ações no primeiro trimestre de 2022.

Uma análise recente do BTG, publicada pelo Valor Econômico e Brazil Journal, revelou que os programas de recompra de companhias brasileiras aumentaram continuamente nos últimos anos: em 2019, foram 20 programas; o número subiu para 38 em 2020; 59 em 2021; e somaram 33 no primeiro semestre de 2022, dentre os quais se incluem companhias como Americanas, Gerdau, Gol, Locaweb, Cosan, CSN e JBS.

Os programas de recompra de ações são de especial importância em cenários de crise e queda generalizada do preço dos ativos, tal como agora.

O efeito positivo da recompra sobre o preço das ações decorre do natural aumento da demanda, mas principalmente da mensagem implícita que a companhia e seus administradores emitem ao mercado.

Quando os administradores aprovam um programa de recompra das próprias ações, considera-se que estão avaliando que as ações estão cotadas abaixo do seu valor real ou potencial.

Como os administradores possuem, em geral, mais informações sobre a companhia do que o resto do mercado, a demonstração de confiança nos prognósticos da companhia é vista com bons olhos pelos demais players.

Por isso, a operação de aquisição é uma forma eficiente da administração defender as ações da desvalorização excessiva em momentos de crises.

Basta notar que identificamos a correlação entre depressão dos mercados e ascensão de programas de recompra em outros momentos da história.

Luís Fernando Moreira e Jairo Lase Procianov examinaram em paper a disseminação dos programas de recompra em meio à crise financeira, iniciada no sudeste asiático, que derrubou as ações da Bovespa em cerca de 30% em 1997.

Gabriela Cordoniz, por sua vez, verificou em sua dissertação de mestrado o aumento das operações de recompra durante a crise nos subprimes americanos que se alastrou pelos mercados globais em 2008-09.

A importância dos programas de recompra, como vimos estão no instante da aquisição pelo seu efeito positivo sobre os preços, mas não apenas. No momento seguinte, as companhias confere uma nova utilidade para essas ações, promovendo a geração de valor para seus acionistas de diversas maneiras.

Uma vez adquiridas, as ações são inicialmente mantidas em tesouraria e tem três destinos principais:

(i) atendimento ao exercício de opções no âmbito de plano de stock option da companhia;

(ii) cancelamento das ações adquiridas, de modo que o capital social passa a ser representado por menor quantidade de ações, melhorando o retorno sobre o patrimônio líquido de cada ação; e

(iii) alienação das ações, seja via oferta secundária no mercado (que resultará em lucro para a companhia se as ações tiverem valorizado desde o momento da recompra), seja pela utilização das ações como moeda de troca em operações de M&A da companhia.

Já que verificamos a importância econômica dos programas de recompra, resta que analisemos as implicações jurídicas segundo a ótica da Lei das S.A. (Lei 6.404/1976).

Em âmbito mais jurídico do que econômico, o tema é sensível já que a Lei das S.A. (a exemplo de ordenamentos estrangeiros) proíbe a negociação com ações de emissão da própria companhia. Como diz o caput do art. 30, “[a] companhia não poderá negociar com as próprias ações”.

A vedação tem como objetivo a proteção dos credores da companhia. Afinal, por meio da recompra de ações, a companhia restitui capital aos sócios, ao mesmo tempo que o seu patrimônio é reduzido já que troca moedas por ações próprias que não podem ser contabilizadas como ativo pela companhia.

No entanto, como vimos acima, a negociação com ações de própria emissão é um instrumento importante das companhias.

A Lei das S.A., com sua capacidade rara de aliar pragmatismo e precisão técnica, previu o instrumento em condições tais que conferem flexibilidade às companhias sem desamparar os credores.

Além dos casos em que a companhia recompra as ações por mera obrigação (em caso de resgate, reembolso e amortização ou para redução do capital social), o §1º do art. 30 estabeleceu a faculdade da companhia negociar com as próprias ações com a finalidade de mantê-las em tesouraria para aliená-las ou cancelá-las, como vimos.

É preciso, no entanto, que as recompras de ações sejam realizadas “até o valor do saldo de lucros ou reservas, exceto a legal, e sem diminuição do capital social” (art. 30, §1º, b).

Como o prejuízo sofrido pela companhia só pode reduzir o capital social se não for absorvido pelos saldos de lucros ou reservas (art. 189), a compra com recursos desses saldos de lucros ou reservas não impacta o capital social.

A recompra deve ser realizada com base nos recursos presentes nas reservas de lucros ou de capital da companhia, exceto a reserva legal. Caso a Companhia não possua reservas para realizar a recompra, a recompra poderá ser realizada com base nos lucros realizados no exercício social em andamento, sendo necessário descontar de tal montante o valor que seria destinado à reserva legal.

A lógica da Lei das S.A. é de que a proibição à negociação de ações de própria emissão visa a proteger a integridade do capital social, de modo tal que não se justifica manter a proibição desde que as ações não sejam adquiridas em prejuízo do capital social.

Desde que a companhia possua tais recursos, a Lei das S.A. entende que a situação financeira é compatível com a aquisição de ações de própria emissão, sem prejudique o cumprimento das obrigações assumidas com credores.

A disciplina societária, assim, mostra-se salutar à conformação de arranjos entre economia e direito, entre os incentivos à atividade produtiva e a proteção de terceiros e da própria sociedade.

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