A crise dos dados estatísticos na nova economia global

  • por

Acho muito mais interessante conviver com a incerteza do que com respostas que podem estar erradas.”

Richard Feynman

Na coluna de 25 de setembro do ano passado, alertamos para o fato de que os modelos teóricos desenvolvidos até meados do século 20 não dão mais conta da atual economia internacional pós-pandemia. Os manuais são de pouca utilidade para singrar pelo novo e pelo desconhecido, restando apenas a sabedoria prática, a Prudência, para nos guiar. Estamos oficialmente em mares nunca dantes navegados.

Nossa avaliação é compartilhada pela Economist. Em artigo recente, intitulado “The Mona Lisa effect”, a prestigiosa revista britânica compara a economia pós-pandemia ao famigerado sorriso de La Gioconda: “Cada vez que você olha, vê algo diferente”. Segundo a publicação, “os estatísticos oficiais estão suando para entender o quadro”. “Talvez o mundo esteja simplesmente mais volátil”, sugere a revista, antes de arrematar que “no entanto, também há mudanças mais profundas em jogo.” Ninguém é profeta em sua própria terra.

Um dado interessante apontado pelo artigo é o da aceleração de uma tendência, principalmente após a pandemia, de as pessoas não responderem a enquetes, o que pode causar um sério impacto na acurácia das estimativas oficiais. “Nos Estados Unidos,” segundo o artigo, “a taxa de resposta à pesquisa usada para estimar as vagas de emprego caiu de quase 60% pouco antes da pandemia para cerca de 30%”.

Os dados relativos ao mercado de trabalho, de fato, são particularmente intrigantes. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego em março deste ano fechou em míseros 3,5%. Na zona do euro está em 6,6% e no Brasil em 8,6%. Esses números são historicamente baixos, sugerindo, em especial no caso da economia norte-americana, uma possível situação de pleno emprego, na qual a taxa de desemprego existente reflete apenas o movimento natural de um mercado de trabalho em equilíbrio de oferta e demanda.

Se uma economia está em pleno emprego ou próxima dele, ao menos em teoria, seria de se esperar um aumento real tanto da produtividade quanto do rendimento médio do trabalho, além de alguma pressão inflacionária de custos, isto é, não monetária. Mas não é isso que os outros dados mostram. Em escala global, em que pese o desenvolvimento e a popularização de novas tecnologias, os níveis de produtividade não tem apresentando uma evolução sequer compatível com os próprios índices de crescimento econômico. O rendimento do trabalho, da mesma forma, tem se mostrado estagnado desde a década de 1970, em um longo e doloroso processo global de transferência de renda dos assalariados para o mercado financeiro e para os proprietários de imóveis, gerando uma aguda crise do custo de vida ao redor do globo.

A leitora atenta, de fato, ao olhar para o quadro da economia global tem a sensação de estar diante do sorriso de Mona Lisa: em um momento parece satisfatório, em outro parece tristemente sarcástico, como se estivesse assistindo a uma tragédia dolorosa. A vida imita a arte.

A visão, assim, indica a necessidade cada vez mais premente de se tomar as estimativas oficiais cum grano salis. Como já tivemos a oportunidade de analisar aqui neste espaço, em fevereiro último, as estatísticas oficiais nada dizem sobre a qualidade do emprego e nem tampouco sobre a quantidade de empregos que uma mesma pessoa porventura venha a ter. Em outras palavras, as estimativas oficiais não apontam nem o underemployment nem o overemployment.

Além disso, a Economist alerta para o risco de que as respostas às enquetes oficiais estejam enviesadas, se a amostragem populacional que se demonstra disposta a responder não seja significativamente diversa, o que pode gerar uma volatilidade dos dados ou até uma inflação das estimativas. Segundo a revista britânica, “as pessoas que pararam de responder às pesquisas parecem menos prósperas do que aquelas que continuam a fazê-lo, inflando a renda de forma enganosa.” A renda e o emprego. There is no free lunch.

A nova economia global, em suma, carece não apenas de modelos teórico-explicativos, mas de novas metodologias quantitativas e estatísticas também. Até que a humanidade se adapte ao novo normal, os tomadores de decisão devem avaliar todas as informações com parcimônia redobrada. A sabedoria prática, a Prudência – mãe de todas as virtudes, segundo São Tomás de Aquino –, é a única guia confiável para singrar, sem instrumentos, por mares nunca dantes navegados. Sapientia melior auro.[1]

[1] A sabedoria é melhor do que o ouro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *