A democracia regulada existe?

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É possível que as normas técnicas regulatórias também sejam normas eivadas de lacunas interpretativas? Tais normas podem possuir conceitos fluidos? Se assim se entenda, é possível completar tais lacunas e conceitos com a eficácia objetiva dos Direitos Fundamentais, dos princípios e dos valores constitucionais? Enxergar a eficácia irradiante das normas constitucionais como premissas estruturantes do Estado Administrativo regulador é um dos desafios que o Direito Administrativo possui na sua contemporaneidade.  

Mas, antes, uma ressalva. Como sistema jurídico, é possível, em um primeiro momento, que salte da memória a constitucionalização de todos os ramos do Direito. Sendo assim, seria óbvio constatar que as normas técnicas regulatórias, espécie de ato normativo secundário originado do poder normativo das Agências Reguladoras, recebam, em certa medida, a irradiação da eficácia normativa da Constituição Federal de 1988. Mas não é só isso.  

Em primeiro lugar, o deslocamento de competências das questões técnicas ao poder normativo das Agências Reguladoras não está propriamente encaixado, único e exclusivamente, por conta da técnica em si, mas, sim, no resultado (fim) almejado. Em outras palavras, desloca-se a competência do poder normativo, originariamente do legislador, para as Agências Reguladoras, porque a ausência de expertise técnica legislativa não levaria ao resultado almejado, daí porque a alocação da técnica é apenas um meio à satisfação da regulação que melhor atenda ao interesse público.  

Desse deslocamento, surge o mais importante: já se sabe que a constitucionalização de todos os ramos do direito é realidade, mas, de que forma, então, esse processo também poderia ser enxergado como complementar aos casos de lacuna nas normas técnicas? Muitas perguntas, mas que todas desembocam em uma premissa estruturante de permissão a uma nova tecnicidade, qual seja, àquela constitucionalmente preenchida.  

Para essa breve apresentação, destaco que a tecnicidade constitucionalmente preenchida é consequência da premissa maior que sustenta todo esse desenrolar, a boa e velha democracia. No entanto, a democracia aqui presente, sob o recorte dos espaços de regulação das Agências Reguladoras, também sofrerá influxos da mutabilidade econômica e do próprio setor, sendo renomeada como uma “democracia regulada.” 

A democracia regulada, então, é aquela conferida dentro dos espaços de participação social das Agências Reguladoras e, como o próprio nome diz, é regulada, tanto pelo viés do regulador, quanto pelo viés do regulado. Isso porque, é possível que se perceba os instrumentos estruturais da democracia deliberativa dentro de um procedimento de participação social nas Agências Reguladoras. Os elementos são simples e não fogem daqueles legitimadores de um processo de tomada de decisão, quais sejam: 1) os sujeitos da deliberação, 2) o objeto da deliberação e 3) o processo ou procedimento de deliberação[1] 

Os sujeitos de deliberação são, comumente, os agentes regulados e experts do setor em questão. Já o objeto de deliberação é modificado a cada interesse público em jogo. Por fim, o processo ou procedimento de deliberação pode variar, a depender da regulamentação de cada Agência – A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) – por exemplo, por meio da sua Resolução ANP nº 846/2021 ampliou a sua participação social, indo além da permissão antiga de apenas admitir as Audiências Públicas, regulamentando, agora, a permissão das Consultas Públicas e Consultas Prévias.  

Em um procedimento de “democracia regulada”, a possibilidade de regulador e regulado complementarem-se está dentro da ótica de uma Administração Pública consensual e que permite que os eixos da consensualidade existam em ambos os lados, tanto do administrador, quanto do administrado. Fala-se, portanto, em consensualidade na administração pública, sendo aquela com uma maior possibilidade de atuação do regulado na persecução das suas finalidades regulatórias; como também, a consensualidade da administração pública, em que essa última busca os meios necessários a obter a maior participação do setor regulado e, por assim também dizer, acaba por concretizar, quando da ampliação dos mecanismos de participação, a própria “democracia regulada.”  

Nesse contexto, é pela lógica da democracia regulada e dos eixos do princípio da consensualidade que se responde que é possível, em um processo de participação social, que as normas técnicas possam possuir conceitos fluidos. Isso porque, a realidade econômica do setor regulado influencia na mutabilidade da própria regulação, necessitando que a própria norma recepcione essas influências, sob pena de ausência de matriz normativa apta a regular. Mais ainda, tais conceitos podem ser complementados pela noção de mínimo existencial econômico [2]o que, por si só, já atesta a eficácia da constitucionalização do direito na complementação das lacunas técnicas. 

Por fim, a democracia regulada aumenta a possibilidade da tomada de decisão regulatória razoável, sendo aquela que dialoga com os fatos reais, aqui entendidos como a tecnicidade do setor regulado. Logo, enxergar os Direitos Fundamentais nas premissas estruturantes do Estado Administrativo regulador é entender que a fluidez da economia e da mutabilidade dos seus conceitos técnicos que, por sua vez, estarão presentes nas normas técnicas, concretizarão ideais de mínimo existencial econômico, quando da participação dos agentes regulados em ambientes de participação social.  

Com isso, espera-se que as perguntas iniciais possam ter sido respondidas, em um objetivo claro de diminuir a distância entre regulação e a constitucionalidade do ordenamento jurídico.  

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[1] BOLONHA, Carlos; GANEM, Fabrício; ZETTEL, Bernardo. O modelo democrático-deliberativo: possibilidades institucionais. Revista Direito Estado e Sociedade, 2012.  

[2] BRAND, Julia. A ANP e o Mínimo Existencial Econômico. Como as Agências Reguladoras podem atuar no preenchimento das lacunas principiológicas. JOTA., 2021.  

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