A desnecessidade de anuência de cônjuge para cirurgias de esterilização

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Em meio a uma era de grande ativismo feminino, de exposição, debate e de luta pelos direitos reprodutivos, a existência de norma que condicionava a mulher aos desígnios e decisões de seu marido quando o assunto era ter (ou não) filhos tinha notório condão retrógrado.

Negativamente fora de seu tempo, mas nada muito diferente do previsto até 2003, data da entrada em vigência do atual Código Civil. O texto anterior chancelava, por exemplo, uma sociedade patriarcal de patronímico primordial o masculino, em que o homem era o chefe do casamento e poderia anulá-lo se descobrisse uma não virgindade.

Em 12 de janeiro de 1996 foi publicada a Lei 9.263, que trata do planejamento familiar. A lei dispunha, em seu artigo 10, §5º, que o procedimento de esterilização dependia do consentimento expresso de ambos os cônjuges, ou seja, a mulher ou o homem que pretendessem realizar o procedimento cirúrgico que impedisse ou cessasse a fertilidade necessitavam da aceitação de seu companheiro ou de sua companheira.

Sancionada em 2 de setembro de 2022, a Lei 14.443 mostra um avanço no esforço e a favor dos direitos reprodutivos das mulheres: a citada norma revogou expressamente o §5º do artigo 10 da Lei 9.263/96 e agora vige a regra da não necessidade – ou quem sabe dispensa – do consentimento expresso dos cônjuges no procedimento de esterilização.

Antes que se possa discutir sobre a dinâmica das responsabilidades, dos deveres do casamento e do direito recíproco à informação, faz-se importante entender os procedimentos de esterilização em si, tanto na mulher quanto no homem e, quais são os resultados[1].

A vasectomia é usada para oferecer contracepção permanente aos homens e a cirurgia envolve seccionar e fechar os tubos que transportam os espermatozoides. Em alguns casos a vasectomia pode ser considerada reversível. A contracepção permanente para as mulheres, conhecida como laqueadura, consiste numa cirurgia para interromper as trompas de falópio, que têm função de transportar o óvulo dos ovários para o útero. A laqueadura é considerada, em regra, irreversível.

Diante da mudança na legislação, é preciso distinguir a intenção inicial da realidade fática e como essa alteração vai implicar na sistemática conjugal a partir de agora. Fazendo um breve apanhado histórico, na Constituição Federal de 1937, existia um exausto incentivo à reprodução da mulher e, ainda, proibia qualquer método contraceptivo. Já na década de 1960, por necessidade de controle populacional, se desenvolveram os métodos contraceptivos. Nas décadas seguintes, a preocupação ainda circundava o controle geográfico e não era sobre escolha da mulher querer ou não se reproduzir.

Foi só em 1988, no texto constitucional, que se criou o planejamento familiar, dando certa liberdade para as pessoas envolvidas em uma relação conjugal (ou não) e fornecendo ao casal assistência necessária desde a concepção e contracepção. Ainda que a Constituição tenha promovido, em tese, a igualdade, na prática é possível enxergar uma outra realidade.

Fortes valores sociais moldam normas, mas o oposto, normas modelarem valores em uma sociedade cujas disparidades e injustiças são enraizadas e cotidianas, é claramente uma conjuntura mais difícil. É por esse e outros motivos que os movimentos sociais feministas contemporâneos – pautados na liberdade e igualdade da mulher com seu corpo – constroem e efetivam pautas, como a recente alteração na legislação sobre fertilidade.

Após contextualização, é possível que se ingresse na segunda parte destas breves divagações: os reflexos da alteração legislativa sobre outros direitos. Talvez direitos menos importantes que a dignidade humana e a liberdade de escolhas sobre o corpo, mas também direitos relevantes. Cara leitora, caro leitor, façamos juntos um exercício imaginativo: após vários anos de matrimônio um dos cônjuges, cujo frustrado grande anseio da vida era gerar prole, descobre que o outro cônjuge se submeteu anos atrás, mas na constância do matrimônio, a uma cirurgia de esterilização, secretamente. A quais direitos e deveres o cônjuge omisso transgrediu ou se absteve? Passível de gerar consequências jurídicas ou podemos falar em fato meramente imoral?

Nestas poucas palavras temos como função edificar um debate, mas não exaurir o tema.

O Código Civil brasileiro estabelece os direitos e deveres do casamento nos artigos 1.511[2] e 1.566 a 1.580. Esses dispositivos legais estabelecem as obrigações dos cônjuges e as regras que devem ser seguidas no âmbito do matrimônio. É possível citar, dentre outros, inclusive implícitos e imerso na sistemática do direito das famílias: os deveres e direitos à assistência mútua; os deveres e direitos à vida harmoniosa e em comum; os deveres e direitos à fidelidade recíproca; os deveres e direitos à administração dos bens comuns; os deveres e direitos à proteção da família e dos filhos.

Ainda que tenha um viés público (ou publicista) e seja implícito, mas uma consequência lógica dos deveres de comunhão plena e harmoniosa, é possível se falar em direitos e deveres de informação em meio à relação conjugal. Na relação matrimonial, o dever de informação é um dos pilares fundamentais para a construção de um relacionamento saudável, leal, equilibrado, transparente e juridicamente justo. Trata-se da obrigação que cada cônjuge tem de informar o outro sobre questões relevantes relacionadas ao casamento, tais como finanças, saúde, educação e decisões importantes que afetam o casal e sua eventual prole.

Embora não seja uma resposta unânime, decerto é concebível falar que, para alguns, a não geração de filhos é um infortúnio, um prejuízo, uma injúria ou até um dano psicossocial, se a causa é por culpa ou ação deliberada de uma outra pessoa. Dano esse, que na sistemática civilista, é requisito sine qua non da obrigação de reparar e indenizar em sede de responsabilidade, sob pena de um enriquecimento ilícito. Afirmação essa que se confunde com a própria definição de responsabilidade, ou seja, a obrigação de reparar o dano causado a outra pessoa, em decorrência de uma conduta, ativa ou omissa, que viola um dever jurídico, tendo como requisitos: a conduta; o dano, qual seja o prejuízo real sofrido pela vítima, seja ele material ou moral; nexo causal; culpa ou dolo; capacidade civil do agente.

As considerações finais não são conclusões, são tão somente inquietações para que constatem suas respostas. O dever de informar é dever próprio da relação conjugal; descumprir um dever de relação jurídica é descumprir um dever jurídico; descumprir um dever jurídico que gere dano moral e cumpra os demais requisitos é passível de indenização. Somente a construção jurisprudencial – que já avançou em responsabilizar pela quebra de outros deveres do matrimônio[3] – poderá cristalizar se a não informação a outro cônjuge sobre a realização de cirurgia esterilizante acarreta ato ilícito indenizável ou não se possa falar em responsabilidade civil nestes casos, em respeito a direitos individuais que se sobrepõem aos do casamento.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 742137 / RJ. Recurso Especial 2005/0060295-2. Ministra Nancy Andrighi. DJ 29/10/2007 p. 218.

BRASIL. Lei 3071 de 01 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil

BRASIL. Lei 9263 de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências.

BRASIL. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

[1] Para mais informações vide página e resolução do Conselho Federal de Medicina. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/esterilizacao-cirurgica/

[2] Válida a transcrição dos artigos 1511, 1566 e 1567 do Código Civil de 2002:

Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. […]

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos.

Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.

[3] Trata-se do precedente no REsp 742137 / RJ publicado em DJ 29/10/2007 e traz em ementa o seguinte: “Exige-se, para a configuração da responsabilidade civil extracontratual, a inobservância de um dever jurídico que, na hipótese, consubstancia-se na violação dos deveres conjugais de lealdade e sinceridade recíprocos, implícitos no art. 231 do CC/16 (correspondência: art. 1.566 do CC/02).

– Transgride o dever de sinceridade o cônjuge que, deliberadamente, omite a verdadeira paternidade biológica dos filhos gerados na constância do casamento, mantendo o consorte na ignorância.

– O desconhecimento do fato de não ser o pai biológico dos filhos gerados durante o casamento atinge a honra subjetiva do cônjuge, justificando a reparação pelos danos morais suportados.”

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