A histórica decisão da CIJ no caso Gâmbia v. Mianmar

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“O caso contra a noção de objetividade histórica é como o caso contra o direito internacional, ou a moralidade internacional; o de que ela não existe.”

Isaiah Berlin

No último dia 22 de julho, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) publicou a sua decisão preliminar no caso “Aplicação da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Gâmbia v. Mianmar)”. A CIJ abordou as objeções preliminares de Mianmar, confirmando a sua competência para ouvir a matéria, com base no artigo IX da Convenção do Genocídio, e decidindo pela admissibilidade da petição inicial apresentada pela República da Gâmbia em 11 de novembro de 2019. O caso seguirá agora para julgamento de mérito. Trata-se de uma decisão revolucionária, que vai além do precedente do caso Barcelona Traction ao estabelecer, pela primeira vez, um jus postulandi conectado a um jus cogens.

O caso se refere à situação dos rohingya, um grupo étnico de maioria muçulmana, que habita há séculos no Mianmar, país de maioria budista. Estima-se que a população rohingya conte com cerca de 864.281 refugiados no Bangladesh, país que faz fronteira com o estado costeiro de Rakhine, território tradicional da população e um dos mais pobres do país. O Mianmar não reconhece os rohingya como um dos 135 grupos étnicos oficiais do país, o que, na prática, os jogaria em uma situação de apatridia, por não lhes conferir a nacionalidade do país.

O Mianmar considera entidades como a Organização Nacional Arakan Rohingya (Arno, na sigla em inglês), uma entidade sediada no Reino Unido que defende o direito de autoderminação da população rohingya, e a Organização para a Solidariedade Rohingya (RSO, na sigla em inglês), entidade militante que opera na região fronteiriça com Bangladesh, como grupos terroristas, com ligações com o Talibã e a Al-Qaeda, que apresentam uma ameaça existencial ao país.

A situação se deteriorou consideravelmente a partir de 2016, com o início de uma campanha brutal de assassinatos em massa, estupros e incineração de vilas, que forçou centenas de milhares de rohingyas a se refugiarem em outros países da região. A campanha de violência e de perseguição gerou intensa condenação internacional. Em 2017, o Conselho de Direitos Humanos da ONU instituiu uma missão de avaliação independente, que divulgou seu relatório final em setembro de 2019, concluindo que a população rohingya era perseguida e vivia sob a ameaça de genocídio. Em março deste ano, o governo norte-americano declarou formalmente que as Forças Armadas de Mianmar cometeram genocídio e crimes contra a humanidade.

Assim, com base no relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 11 de novembro de 2019, a Gâmbia, apoiada pela Organização da Cooperação Islâmica (OCI), iniciou procedimentos contra Mianmar na CIJ, por violações à Convenção do Genocídio de 1948. A leitora atenta deverá notar que um dos pontos jurídicos mais interessantes do caso é o fato de que a Gâmbia, ou os seus nacionais, não foram, em momento algum, diretamente atingidos pelas ofensas alegadas. A capacidade postulatória alegada por Banjul baseia-se inteiramente no fato de que a Convenção do Genocídio de 1948 consagra normas peremptórias de Direito das Gentes, isto é, normas de jus cogens, que estabelecem obrigações inderrogáveis para com a humanidade como um todo, isto é, as obrigações consagradas na convenção são devidas erga omnes, e, portanto, todos os Estados têm um interesse jurídico na proteção dos direitos em questão.

A Gâmbia baseou a submissão desse ponto em dois precedentes da CIJ, que não se ajustam perfeitamente ao caso em tela. No primeiro, a questão do jus cogens é mencionada somente em obter dicta — o caso Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited (Belgium v. Spain) —, e, no segundo caso, a Gâmbia baseia-se em uma analogia com relação à Convenção contra a Tortura — o caso Questions relating to the Obligation to Prosecute or Extradite (Belgium v. Senegal).

Note, cara leitora, que, na tradição jurídica dos países de origem anglo-saxã, uma decisão judicial compõe-se de dois elementos fundamentais: a ratio decidendi, isto é, as razões jurídicas que embasam formalmente a decisão, e o obter dicta, isto é, tudo o mais que for ali mencionado, mas que não serve de fundamento para a decisão. Somente o que é ratio decidendi possui força jurídica apta a constituir um precedente judicial. Em outras palavras, obiter dicta não é fonte do direito.

Já com relação ao caso Bélgica v. Senegal, a CIJ decidiu que qualquer Estado-Parte da Convenção contra a Tortura poderia invocar a responsabilidade de outro Estado-Parte, uma vez que as obrigações ali consagradas são exigíveis erga omnes. Vale lembrar que naquele caso havia um tratado bilateral de extradição e um pedido extradicional concreto em questão. Ou seja, havia alguma conexão da reclamante com os fatos, como foi objetado por Mianmar em suas preliminares a que nos referimos logo abaixo. É também importante que a leitora tenha em mente que as decisões da CIJ não fazem jurisprudência, isto é, a corte não estava adstrita a julgar a presente questão por analogia.

Como seria de se esperar, Mianmar levantou quatro objeções preliminares, protocoladas em 20 de janeiro de 2021. A primeira delas alegava que a CIJ não teria competência para ouvir o caso, ou, alternativamente, que a petição inicial era inadmissível, porque o verdadeiro reclamante seria a OCI. A segunda objeção era a de que a Gâmbia não teria capacidade postulatória para apresentar o caso com base no artigo IX da Convenção do Genocídio. A terceira objeção era a de que o caso não poderia ser aceito pela CIJ, dada uma reserva apresentada ao artigo VIII da Convenção do Genocídio. A quarta objeção, por fim, alegava que a corte não teria competência porque não havia uma disputa entre os dois países na data do protocolo da inicial.

No presente ensaio, e por razões de espaço, vamos nos concentrar na segunda objeção preliminar levantada por Mianmar: a de que a Gâmbia não teria capacidade postulatória. Nepiedó iniciou distinguindo, nos fatos, os casos anteriormente apresentados à CIJ e, no direito, a Convenção do Genocídio da Convenção da Tortura. Mianmar alegou que a Gâmbia estaria inovando no Direito Internacional Público, ao propor pela primeira vez na história uma actio popularis – para a qual não haveria nem base jurisprudencial nem consensual —, porque não apenas Banjul careceria de qualquer conexão relevante com os fatos do caso, mas o próprio Bangladesh, país mais diretamente afetado pela questão, não poderia iniciar procedimentos na CIJ, devido às suas reservas ao artigo IX da Convenção do Genocídio. Nepiedó citou especificamente o voto discordante de Philip Jessup em South West Africa (1966), segundo o qual “não há uma ‘actio popularis’ genericamente estabelecida em direito internacional”.

Como a leitora bem pode apreciar, trata-se de um ponto assaz sofisticado de Direito Internacional Público, que demanda o máximo da habilidade jurídica dos advogados e dos juízes envolvidos para a realização de finas distinções que, ao final, apresentam os institutos envolvidos em maior resolução. É precisamente em casos como esses que se produzem os grandes avanços históricos do Direito das Gentes.

No último dia 22 de julho, então, a CIJ publicou sua decisão sobre as objeções preliminares de Mianmar. Todas as objeções foram derrubadas e não há possibilidade de recurso. No que se refere mais especificamente à objeção que estamos analisando, com relação à capacidade postulatória da Gâmbia, a CIJ iniciou sua abordagem da questão citando a sua Opinião Consultiva com relação a Reservas à Convenção para a Prevenção e a Punição ao Crime de Genocídio:

“Nessa convenção, os estados contratantes não têm interesses próprios; eles têm apenas, todos e cada um, um interesse comum, a saber, a realização daqueles propósitos elevados que são a razão de ser da convenção. Por conseguinte, em uma convenção deste tipo não se pode falar de vantagens ou desvantagens individuais para os Estados, nem da manutenção de um equilíbrio contratual perfeito entre direitos e deveres. Os altos ideais que inspiraram a Convenção fornecem, em virtude da vontade comum das partes, o fundamento e a medida de todas as suas disposições”.

A partir dessa análise, assim, a CIJ decidiu que a Convenção do Genocídio estabelece uma obrigação oponível a todas e cada uma das partes da convenção, uma obrigação erga omnes partes. Segundo a CIJ:

“A responsabilidade pelo suposto descumprimento das obrigações erga omnes partes da Convenção sobre o Genocídio pode ser invocada por meio da instauração de um processo perante a Corte, independentemente da demonstração de interesse especial. Se um interesse especial fosse exigido para esse fim, em muitas situações nenhum Estado estaria em condições de fazer uma reclamação”.

A leitora deverá notar que a CIJ não faz menção à instituição de uma eventual actio popularis, fundamentando a sua decisão, ao invés, em uma obrigação erga omnes partes, exigível por qualquer um dos Estados-Parte da convenção. Esse ponto da decisão foi obtido por quinze votos contra um, tendo a juíza Xue Hanqin discordado e apensado um voto em separado. A juíza Hanqin entendeu que a OCI era, de fato, a reclamante real, sob mandato e financiamento da qual a Gâmbia estava atuando. Levando-se em consideração que a jurisdição da CIJ é somente inter partes e restrita a Estados, seria necessária uma conexão real entre os fatos e a reclamante a ponto de gerar uma disputa genuinamente bilateral. Segundo a juíza Hanqin:

“Basear-se inteiramente nas provas e fontes materiais coletadas por terceiros apenas reforça o argumento de que o caso é uma ação de interesse público, uma actio popularis. Tal ação, mesmo na forma de uma disputa bilateral, pode de fato permitir que organizações internacionais tenham acesso à Corte no futuro”.

A juíza Hanquin completou mais adiante:

“se as obrigações decorrentes dessas convenções são, portanto, consideradas obrigações erga omnes partes, em virtude do raciocínio da Corte no presente caso, isso significa que qualquer um dos Estados Partes, especialmente afetado ou não por uma alegada violação das obrigações relevantes, teria legitimidade para instaurar procedimentos na Corte contra o suposto Estado-Parte, desde que nenhuma reserva à jurisdição da Corte seja formulada por nenhuma das partes. Essa abordagem tem duas consequências potenciais: uma é que mais Estados fariam reservas à jurisdição da Corte e a segunda é que a preocupação que a Índia expressou durante o processo de negociação do artigo IX da Convenção sobre o Genocídio, a respeito de alegações vagas e insubstanciais, pode ser levantada novamente”.

Diante da delicada situação humanitária da população rohingya e da necessidade de a comunidade internacional prover uma solução rápida e duradoura para ela, intricadas questões jurídicas se levantam para complicar ainda mais um quadro já demasiado complexo. Vale notar, contudo, que se trata da primeira vez em que CIJ desenvolve o raciocínio esboçado em Barcelona Traction, acerca do reconhecimento, ainda que obiter, da existência de um jus cogens, capaz de impor obrigações à comunidade internacional como um todo. A presente decisão, assim, dá um passo além nesse reconhecimento, relacionando, pela primeira vez de maneira clara e articulada – e dentro de uma ratio decidendi – um jus postulandi conexo a um jus cogens. Uma decisão histórica, que certamente entrará nos manuais de Direito Internacional Público. Salus aegroti suprema lex.[1]

[1] A saúde do paciente é a lei suprema.

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