A incompreensão do controle da administração pública

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“Ser grande significa ser incompreendido.”

Oscar Wilde

Nos últimos anos, floresceu, no campo do Direito Administrativo nacional, a concepção de que os gestores públicos estariam sendo limitados, emasculados, tolhidos pelo excesso de controle.

Na visão dessa corrente, a profusão de órgãos de controle tem invariavelmente um vetor que parte do órgão de controle para o agente público, seus atos e processos. Em outras palavras, o debate inaugurou uma defesa notável do gestor com vistas a contenção dos órgãos de controle.

Penso, entretanto, que nesses termos a questão parece estar mal colocada. Porquanto o embate entre gestores e controladores parece olvidar um terceiro personagem central nessa equação, qual seja, os administrados, os cidadãos, os contribuintes, os particulares, enfim, a sociedade.

Nesse sentido nos filiamos a Floriano Marques no ponto em que sustenta a multipolaridade do Direito Administrativo, pois de fato não é possível mais compreender as atividades da administração pública divorciadas dos privados[1].

Percebam, a condição de agente não o outorga imediatamente à titularidade do interesse público, da boa-fé ou da preocupação com o alcance de direitos e garantias fundamentais. Aliás, é inclusive de nossa tradição político-administrativa o autoritarismo, o clientelismo, a dominação, o patrimonialismo, a captura, a violência e o personalismo. Em outras palavras, nem sempre o indeferimento da licença é fruto do temor que o agente público guarda do órgão de controle.

Assim, o fortalecimento dos órgãos de controle é imprescindível para o enfrentamento dos desvios e dos arbítrios dos detentores de poder. Nessa linha de ideias, deferência e reverência em muito se distinguem. A deformação do conceito de deferência ao juízo do administrador público, não raras vezes, tem se revelado um biombo, uma blindagem favorável à difusão da ineficiência e de danos à população.

A burocracia em nosso país reúne boa parte daquilo que tentamos refletir neste texto. Frise-se a via dolorosa que o cidadão precisa percorrer, por exemplo, para constituir um empreendimento, erguer um lar ou obter uma patente. A despeito da abundância de órgãos participantes com vistas a desestimular tais empreitadas, ainda falta pujança à doutrina administrativista para enfrentar, sob tal perspectiva, semelhantes males. A nosso ver, o engajamento é mais robusto na salvaguarda do agente público do que necessariamente do administrado.

Por isso, andou bem o professor Marcus Augusto Perez, em sua tese de livre docência, ao reiterar: “se o agente público na atualidade tem maiores margens de discricionariedade, maiores devem ser o controle que recaem sobre suas ações”[2].

Não se pretende abordar diretamente o vetusto debate sobre a necessidade de mais ou menos estado, a questão é antes onde deve haver maior ou menor presença estatal. Tratamos precisamente da inflação do estado sancionador e não do tamanho do estado provedor. O debate necessário não se encontra na extensão do estado, mas no seu desenho; logo é qualitativo.

De sorte que não se cuida igualmente do punitivismo ao gestor, mas do punitivismo ao cidadão sob incontáveis dimensões. Este possui múltiplas sequelas, como, por exemplo, a exacerbação das forças policiais sobre determinados extratos sociais, apesar de aquelas, é bom que se diga, integrarem a administração pública e estes constituírem em administrados. Esse é um caso aliás em que a ampliação e não a redução do controle é bem-vinda, a exemplo da instalação de câmeras corporais. Vale dizer, a imunidade dos agentes públicos não necessariamente possibilitará a superação dos citados vícios presentes no estado brasileiro.

Nesse sentido insistimos, a overdose de controle, a bem da verdade, incide mais sobre o cidadão do que sobre o agente público. O gestor que se queixa do apagão das canetas é o mesmo diligente cumpridor da norma que caneta o cidadão excessivamente nas ruas para favorecer o caixa do estado. Como ouvi certa feita de um agente do estado da área de segurança pública: “atuo como espécie de coveiro; se os estados educação, saúde, assistência social … falham, não me resta alternativa a não ser aplicar a lei”.

De fato, o gestor público está longe de ser o mocinho dessa trama, muito menos o vilão. Está mais para alguém que atua segundo um script que lhe é adrede definido. Algumas vezes se vale da estrutura da administração e de seu notório corporativismo para perpetrar toda sorte de arbitrariedades; outras, presta um excelente serviço à comunidade. De qualquer modo essa tampouco pode ser considerada uma perspectiva original, pois de acordo com Arendt: “O problema de Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais”[3].

Por todo o exposto impõe-se uma reforma no sentido de controlar, ou seja, de conter o Estado punitivo com vistas a permitir a ampliação da autonomia dos particulares, pessoas naturais e jurídicas. Esse árduo trabalho começa pelo enxugamento, flexibilização e mitigação imprescindíveis das normas sancionadoras e limitantes do cidadão em poder do Estado e de seus agentes, inclusive penais, e passa também pelo redirecionamento da atuação e cultura dos órgãos de controle externo enquanto ferramenta para guiar a administração pública em prol da sociedade e da emancipação do indivíduo.

[1] A bipolaridade do direito administrativo e sua superação. Contratos públicos e direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015. Acesso em: 16 jul. 2022.

[2] PEREZ, Marcos Augusto. Controle da Discricionariedade Administrativa.

[3] Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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