A regulação das redes sociais

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Como a extrema direita se alimenta de mentiras sistemáticas, desinformação, intolerância, hostilização dos adversários, afrontas às instituições, discursos de ódio, estímulo a intentonas e golpes e outros arroubos autoritários, a oposição da bancada bolsonarista na Câmara dos Deputados contra o PL das Fake News já era previsível.

Já aprovado pelo Senado, o projeto impõe medidas regulatórias para neutralizar abusos nas redes sociais. Obriga as big techs a dar maior transparência sobre seus algoritmos. Prevê a responsabilidade solidária das plataformas digitais e dos usuários quando houver danos causados por conteúdos cuja distribuição tenha sido impulsionada por pagamento. Estabelece pena de prisão de três anos para quem usar as redes para promover desinformação. E cria uma agência autônoma de supervisão pelo Executivo que seria responsável por fiscalizar o cumprimento da lei pelas plataformas e aplicar sanções.

A reação do bolsonarismo a essas medidas evidencia o equívoco que se cometeu no momento em que a internet surgiu, quando a organização horizontal e descentralizada das redes sociais foi saudada como um avanço rumo a uma democracia direta digital, com base em consultas populares eletrônicas. A história mostrou justamente o contrário. Ou seja, que as redes sociais tendem a corroer a democracia representativa baseada no sufrágio universal e nos mandatos eletivos e a levar à perda da capacidade do poder público de atuar em determinados processos sociais. Em que medida o poder das tecnologias digitais está se sobrepondo à ação política e qual é a legitimidade de seu poder?

Indagações como essas surgiram no contexto das transformações ocorridas nas décadas finais do século 20. Uma foi a revolução econômica, que ampliou a autonomia do capital financeiro com relação aos poderes políticos. Outra foi a revolução sociológica, uma vez que os novos métodos de produção desestruturam o mundo do trabalho e, por consequência, a composição social do operariado e da burguesia.

Uma terceira revolução foi a tecnológica, que propiciou comunicação em tempo real e a formação de redes sociais. A quarta revolução foi a política, com o enfraquecimento de muitos Estados nacionais frente à hegemonia de poderes transnacionais. A quinta revolução foi a cultural, que reconfigurou os horizontes de vida dos cidadãos e gerou conflitos de identidade, radicalizando disputas e tornando determinados conflitos não negociáveis.

Naquele momento, as possibilidades democratizadoras das redes sociais foram recebidas como uma forma de superar os vícios da representação política. Nos últimos anos, contudo, o otimismo cedeu vez ao pessimismo. Em vez de abrir caminho para a construção de uma vontade política, as redes digitais passaram a divulgar informações destrutivas. A comunicação virtual empobreceu a ação cívica. Também introduziu uma lógica de curto prazo e substituiu a formulação de políticas públicas por agitação raivosa e por manifestações antidemocráticas. Ideias, promessas, projetos e alianças passaram a ser corroídas do dia para a noite. Em vez de ajudar a moldar o futuro, viabilizando a formação de um consenso em torno de um projeto de nação, as redes sociais reduziram as discussões a um moralismo fundado em pautas simplificadoras para julgar cidadãos.

Na sociedade digitalizada, tudo funciona a partir de mensagens e discursos que acenam com uma rejeição generalizada ao estado de coisas, prometendo soluções e redenções pela descontinuidade e ruptura. A mobilização por meio de redes sociais possibilita vetos e protestos, mas não o labor argumentativo nem a construção de acordos com base num debate livre e crítico e a consecução de compromissos cívicos. O que é absurdo na democracia representativa, como ameaças de retaliação a anunciantes nos meios de comunicação, na democracia digital torna-se algo normal ou comum. Nas últimas semanas, a situação chegou a tal ponto que surgiram nas redes sociais estímulos para novos ataques a escolas.

Apesar do contínuo fluxo de informações sem filtros na chamada ciberesfera, a maioria dos cidadãos não é capaz de processá-las com precisão. Sem informações verazes sobre o que os políticos estão fazendo, torna-se difícil para os cidadãos exercer com responsabilidade o direito de voto. Com isso, em vez de se ter na vida política uma diversidade de fatores que esclareça os acontecimentos e permita situar partidos e eleitos diante de suas respectivas responsabilidades, o jogo político é reduzido à busca de culpados e às explosões verbais de populistas, moralistas e aventureiros, cujo desprezo às instituições tendem a crescer quanto maior é a receptividade de suas falas pela opinião pública.

Por causa da disseminação massiva de intrigas, escândalos, mentiras, insultos e difamações, esse jogo acaba sendo instrumentalizado por quem faz do discurso, erodindo as bases da democracia. Por consequência, quanto menos representatividade têm os atores tradicionais, como partidos, sindicatos e imprensa convencional, maior é a assimetria de conhecimento e poder. Mais vulnerável fica a sociedade a toda forma de irresponsabilidades e de insensatez e maior é o espaço deixado a demagogos, a militantes ideológicos, a militares tresloucados e a aventureiros autoritários.

A política é uma forma de obter, por meio do diálogo, as condições mínimas de articulação de regras e procedimentos que, além de orientar de modo coerente o cotidiano da máquina pública, permite a definição de objetivos, o estabelecimento de prioridades e a elaboração de estratégias. É pela política que um Estado democrático pode ter, em momentos distintos, distintas funções adequadas a distintos objetivos, E, por sua natureza, essa negociação é complexa e lenta – portanto, incompatível com a fluidez e com a volatilidade inerentes ao tempo real da era digital.

Por isso, é impossível entender as políticas fora de um quadro de referências normativas instituído pelo Estado. Além de ser um mecanismo de um entendimento que processa divergências e compõe soluções, a democracia pressupõe a delimitação de direitos e deveres. Por isso, também é difícil estimar como suportará a tensão entre interesse público de médio e longo prazo, definido por mediações democráticas e interesses privados imediatistas, que mudam ao sabor dos ventos.

Ainda que não seja viável saber o que vai acontecer com a política, uma coisa é certa: ao propiciar fluxos contínuos de todo tipo de informações, sem que ninguém se apresente como responsável por muitas delas, as transformações na tecnologia de comunicações configuraram um cenário que a democracia representativa não tem conseguido controlar. O que coloca em risco a liberdade à medida que avançam, em velocidade digital, fake news eivadas de demagogia e autoritarismo.

É justamente isso que justifica a necessidade de uma legislação destinada a neutralizar abusos nas redes digitais, mas sem colocar em risco a liberdade de expressão. Ainda que a tentativa de se promover essa neutralização e ao mesmo tempo de preservar a liberdade de opinião caminhe sob um fio de navalha, ela é importante. E pode funcionar caso os legisladores trabalhem com base na análise dos erros e acertos de cada restrição por eles impostas. Não é por acaso que o bolsonarismo está se opondo ao projeto que tramita no Legislativo.

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