Competência supletiva em matéria ambiental

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A Constituição Federal de 1988 introduziu um marco no ordenamento jurídico ao tratar o meio ambiente e elevá-lo ao patamar de bem de uso comum, impondo a perspectiva de que sua preservação é um dever, sobretudo, do próprio Poder Público (§1º do art. 225).

O texto constitucional dedicou um capítulo exclusivo à matéria, além de estipular o dever de reparação daquele que explorar bens minerais (§2º do art. 225), também definiu como comum a competência dos entes federativos quanto ao meio ambiente (art. 23, VI, VII e XI).

Neste contexto, surge a LC 140/2011, que regulamenta o parágrafo único do art. 23 da Constituição de 1988, prevendo, especialmente, a possibilidade de atuação supletiva por parte dos órgãos ambientais e tentando minimizar os conflitos de sobreposição de competência. Essa lei teve sua higidez constitucional chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) através da ADI 4757, que reforçou tanto o cooperativismo federativo, quanto a atuação supletiva dos demais entes.

Porém, ainda é possível identificar medidas que atentem contra o propugnado pela LC. É o que se percebe da recente Consulta Pública do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre Instrução Normativa destinada a instituição de procedimentos para fins de reparação por danos ambientais via  procedimentos administrativos.

O federalismo cooperativo ecológico e a LC 140/2011

O escorço histórico do Estado brasileiro revela que sua formação se deu através de federalismo centrífugo, ou por desagregação, já que a República Federativa do Brasil surgiu a partir da descentralização de um Estado unitário (LENZA, 2014, p. 470). O claro reflexo disso está na repartição de competências entre os entes federados, em que o constituinte disciplinou as privativas da União (art. 22), as de natureza comum (art. 23), concorrentes (art. 24) e supletivas (art. 30, II).

Daí o federalismo cooperativo, no qual o Estado não apenas se descentraliza, mas, sobretudo, conta com a participação de todos os entes federados na promoção de determinado bem comum, como a garantia ao meio ambiente equilibrado (MILARÉ, 2015, p. 804).

É o que ocorre com o parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, que delega ao legislador ordinário o dever de criar a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios.

Esse necessário diálogo interfederativo ganha contornos substanciais no plano jurídico ambiental a partir da LC 140/2011, responsável por regulamentar os incisos III, VI e VII do art. 23 da CF/88 e, sobretudo, engendrar o modelo de federalismo cooperativo ecológico no Brasil (MILARÉ, 2015, p.810). Essa LC fez uma verdadeira reorganização e melhor estruturação do sistema cooperativa então praticado, com vista, especialmente, na solução dos problemas de superposição de competências e efetivamente da tutela ambiental, especialmente a competência supletiva dos órgãos ambientais.

Competência supletiva em matéria ambiental e a ADI 4757

Esse diálogo interfederativo entre os órgãos tem o escopo de promover uma atuação coordenada e harmônica. Nesse sentido definiu a LC 140/2011:

Art. 2° […]

II – atuação supletiva: ação do ente da Federação que se substitui ao ente federativo originariamente detentor das atribuições, nas hipóteses definidas nesta Lei Complementar;

Logo, o que se percebe é que a atuação supletiva ocorrerá somente naqueles casos expressamente previstos na LC 140/2011 (MILARÉ, 2015, p. 824), que são: a) decurso dos prazos de licenciamento ambiental, sem a emissão do respectiva ato (art. 14. §3°); b) falta de órgão ambiental capacitado ou conselho de meio ambiente (art. 15); e c) casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental (art. 17, §2°).

Nas hipóteses, o ente federado, que não detém competência originária para o licenciamento, poderá atuar de forma a substituir àquele que não pôde exercer adequadamente sua atribuição. Ocorre que a LC 140/2011 foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4757, sob o argumento, em síntese, de que ela haveria instituído um sistema que fragilizaria a proteção do meio ambiente.

Porém, o STF manteve os textos legais em vigor e, por exemplo, deu interpretação conforme à Constituição ao art. 17, §3° da LC 140/2011, para admitir que a prevalência do Auto de Infração lavrado por órgão competente não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou fragilidade na tutela fiscalizatória, assim:

“Ante o exposto, como forma de solucionar a inconstitucionalidade parcial do § 3º do art. 17, na parte referente à prevalência do auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput, e seguindo a lógica do princípio da subsidiariedade e do federalismo cooperativo, proponho interpretação conforme à Constituição no sentido da prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental, não excluindo a atuação supletiva de outro ente federado, se comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória”.

Como se percebe, mesmo diante da lavratura de um auto de infração pelo ente competente, não estará afastada à atuação supletiva de outro ente federado, mas só se caso comprovada a proteção insuficiente ao meio ambiente. O STF prestigiou o federalismo cooperativo ante à possibilidade de atuação supletiva, mas a condicionou à prova.

A mineração e a inobservância pelo Ibama à LC 140/2011 e à ADI 4757

O Ibama promoveu Consulta Pública destinada a coletar contribuições para IN, com objeto de regular procedimentos para reparação por danos ambientais. Por Instrução Normativa, entende-se como uma espécie de ato subalterno e expedido por órgão vinculado ao Executivo, de âmbito de regulamentação restrito e limitado ao princípio da legalidade, pois não cria direitos e obrigações (MELLO, 2012, 372).

Entretanto, há excessiva discricionariedade no texto do Ibama que, ao seu bel talante, sem qualquer filtro ou controle objetivo (prova), poderia recusar a implementação de medidas já apresentadas, sobre a mesma área, ao órgão responsável pelo licenciamento (estaduais ou municipais).

É o que se denota do art. 29 da proposta de IN, especialmente seu inciso III:

Art. 29. Caso a documentação comprobatória de regularidade da atividade e/ou propriedade junto ao órgão ambiental estadual ou municipal competente contemple medidas ambientais referentes à área ou atributo ambiental objeto das sanções aplicadas, o Ibama poderá:

[…]

III – recusar a adoção das medidas ambientais apresentadas como solução reparatória quando não cabíveis ao caso, reiterando a notificação ao autuado para apresentação de projeto ambiental para fins de reparação por danos com a indicação das soluções reparatórias adequadas.

A redação supra revela um risco considerável, especialmente pela sobreposição de competências dos órgãos do Sisnama em matéria ambiental. Assim, a cooperação se esvai.

Isso porque, a prevalecer a redação, se permite que o Ibama recuse, a partir de um juízo subjetivo, e no bojo de uma excessiva discricionariedade, a adoção de medidas reparatórias apresentadas pelo autuado perante órgão ambiental municipal ou estadual competente. Nesse caso, as hipóteses de atuação supletiva são ope legis (arts. 14. §3°; 15 e 17, §2º). E mais, a ADI fala em prova e sua decisão vincula a Administração Pública (§2º do art. 102 da CF/88).

Especial atenção merece a atividade de mineração, que é de interesse nacional, utilidade pública e caracterizada pela rigidez locacional (art. 2º, I, II e parágrafo único, I do Decreto 9.406/2018). Imagine um procedimento minerário em que houvera cessão total de titularidade. Nesse procedimento, o titular anterior teria minerado regularmente, mas não teria recuperado a área de mina e o novo titular pretende lavrar na mesma área. Acrescente-se a esse cenário hipotético, mas plausível, que o Ibama autuara o antigo titular a recuperar a área, embargando-a concomitantemente e, para pôr fim ao embargo, o Ibama condicione ao antigo titular firmar um Termo de Compromisso de Reparação por Danos Ambientais (TCRA) para recuperação da área.

Nesse cenário, a lavra na área, por parte do novo titular, estaria obstaculizada por falta de recuperação da área pelo antigo titular, mesmo que o novo esteja em dia com seu procedimento de licenciamento ambiental (no estado federado ou município) e já tenha apresentado um plano de recuperação da área degradada.

Na IN e no caso hipotético, o Ibama estaria claramente atuando fora dos limites da competência supletiva e do entendimento vinculante fixado pelo STF.

Primeiro, pois, a possibilidade de recusa deliberada por parte do órgão, mesmo havendo concordância por parte do ente competente, transforma o Ibama numa espécie de corregedor/fiscalizador daquilo que o ente competente está fazendo, o que é absolutamente incompatível com a perspectiva do federalismo cooperativo e da competência supletiva (MILARÉ, 2015, p. 825).

Segundo, pois, a partir do entendimento consolidado pelo STF, a atuação supletiva nos casos de auto de infração exige a prova da omissão ou insuficiência da tutela fiscalizatória, o que não é sinônimo de uma avaliação discricionária do Ibama.

A norma tal como redigida traz o risco de sobreposição de competência, na medida em que o autuado poderá se sujeitar a diversas medidas compensatórias distintas visando a recuperação ambiental da mesma área, o que, além de trazer clara insegurança jurídica, também irá o onerar sobremaneira.

Conclusões

A partir do federalismo cooperativo o ordenamento jurídico brasileiro estatuiu o federalismo cooperativo ecológico, que, através da LC 140/2011, concretizou uma melhor organização e estruturação do sistema ambiental, calcado no diálogo interfederativo.

O STF, quando do julgamento da ADI 4757, em que pese a procedência parcial, ratificou a higidez constitucional da LC 140/2011 e consolidou a relevância da atuação supletiva dos entes federados na tutela ao meio ambiente, condicionando essa a prova da insuficiência de controle ambiental.

Porém, a proposta de IN do Ibama, sob o argumento de instituir procedimento para reparação de dano ambiental em procedimentos de sua alçada, claramente vai de encontro às sólidas premissas da LC 140/2011 e do STF.

Portanto, embora a iniciativa por parte do Ibama seja importante, a redação da IN, caso não seja modificada, irá sobrepujar a atuação supletiva dos entes federados instituída pela LC 140/2011 e, sobretudo, o entendimento vinculante na ADI 4757, podendo comprometer especialmente a mineração, que detém os atributos da utilidade pública e interesse nacional, além de ser caracterizada pela rigidez locacional. Essa atividade deve ter tratamento diferenciado e pode vir a se desenvolver, inclusive, em áreas que já tenham sido degradadas e embargadas, sendo alvo de procedimentos para fins de reparação ambientais no âmbito do Ibama.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

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