Denúncia de sequestrador de Washington Olivetto pode pôr fim ao RDD

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Uma denúncia levada à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) pelo ex-guerrilheiro chileno Maurício Hernandez Norambuena, mentor do sequestro do publicitário Washington Olivetto, em 2001, pode pôr fim ao atual modelo do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), a “prisão solitária” utilizada em cárceres brasileiros.

Norambuena alega que teve direitos fundamentais violados enquanto esteve preso sob o RDD, inicialmente nas penitenciárias de Taubaté e Presidente Bernardes, em São Paulo, entre 2002 e 2007, e depois em presídios federais, até 2018.

O ex-guerrilheiro veio para o Brasil depois de fugir, cinematograficamente, de um presídio de segurança máxima em Santiago, em 1996, com direito a produção de maquetes do prédio e uso de helicóptero para a ação.

Ele cumpria pena perpétua pelo assassinato do senador Jaime Guzmán, fundador do partido conservador União Democrática Independente (UDI) e pelo sequestro de Cristian Edwards, herdeiro do jornal El Mercurio, um dos principais do país. Ambas as condenações foram em 1993, por crimes cometidos em 1991.

Norambuena já era figura conhecida no Chile, por liderar a Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), uma das principais organizações de luta armada contra a ditadura de Augusto Pinochet, que durou de 1974 a 1990. Pela atuação na guerrilha, ele também foi acusado de crimes como terrorismo, falsificação de documentos e associação ilícita.

Em dezembro de 2001, cometeu o crime que lhe rendeu a prisão no Brasil: um grupo liderado por ele simulou uma blitz no bairro Higienópolis, em São Paulo, e parou o carro em que estava Washington Olivetto. 

O publicitário foi arrancado do veículo e levado a um cativeiro no bairro Brooklin, onde ficou por 53 dias. Norambuena e outros seis sequestradores exigiam R$ 10 milhões para a libertação, mas acabaram sem nada porque foram presos em uma chácara na cidade de Serra Negra. Eles fizeram um acordo com a polícia e indicaram o local em que a vítima estava.

Foi justamente esse histórico criminal que baseou o pedido da administração penitenciária do presídio de Taubaté para submeter Norambuena ao RDD, modelo criado em 2001 pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo e posteriormente ratificado nacionalmente mediante a aprovação da Lei 10.792, a Lei de Execução Penal, em 2003.

A lei prevê que o regime deve ser aplicado a presos “que apresentem alto risco para ordem e segurança do estabelecimento penal e da sociedade”, que tenham indícios de envolvimento em organizações criminosas ou de atuação delituosa em dois ou mais estados da federação. 

Detentos submetidos ao RDD são levados para uma cela individual, com possibilidade de visitas quinzenais por duas horas e banho de sol diários também por duas horas, em grupos de até quatro presos, contanto que não haja contato com membros do mesmo grupo criminoso. Quando Norambuena esteve preso, o banho de sol era apenas de uma hora.

Atualmente, após algumas mudanças legislativas, o prazo máximo para que o preso fique sob o RDD é de dois anos. O ex-guerrilheiro, no entanto, ficou por mais de 16 anos sob o regime, em situação que ele considera “desumana, cruel e degradante”. É o recorde de um preso em prisão solitária no Brasil.

Na penitenciária de Taubaté, por exemplo, ele diz que esteve em absoluto isolamento durante várias semanas e que só podia sair ao pátio uma vez por semana, durante 30 minutos. Também conta que foi torturado durante seu interrogatório, com métodos como aplicação de corrente elétrica em zonas sensíveis do corpo, imersão em água e uso de sacos plásticos sobre a cabeça.

O chileno relata que foram interpostos vários recursos para questionar sua submissão ao RDD – dois habeas corpus e dois recursos de agravo em execução penal. Contudo, segundo ele, as autoridades judiciais demoraram “injustificadamente” para decidir sobre os pedidos.

De acordo com a defesa de Norambuena, a longa permanência sob o RDD provocou o “deterioramento de sua saúde física e mental”, com quadros de hipertensão, enjoos, fortes dores de cabeça, transtornos de ansiedade, insônia, fadiga mental, depressão, entre outros problemas de saúde. 

Norambuena foi extraditado ao Chile em agosto de 2019, depois que o governo chileno se comprometeu a aceitar a condição imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de substituir a pena perpétua por uma prisão de, no máximo, 30 anos, como funciona no Brasil. Ele segue preso.

Em relatório apresentado à Corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pediu a condenação do Brasil pela violação dos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial. Segundo a Comissão, não houve justificativa plausível para a longa submissão de Norambuena ao regime e nem para a ineficácia dos recursos impetrados.

De acordo com o relatório, o RDD se enquadra em um “regime de reclusão em isolamento prolongado incompatível com a Convenção Americana”. Para a CIDH, a lei deve ser modificada, porque não é possível comprovar quais problemas “de segurança” são resolvidos com aplicação do regime.

O processo tramita na Corte IDH desde novembro de 2022 e está ainda nas fases iniciais – a última movimentação foi a notificação das partes, em 22 de março. Depois disso, ainda são necessárias a entrega de relatórios, realização de audiência pública e a apresentação das alegações finais escritas.

Julgarão o caso os juízes Ricardo C. Pérez Manrique, presidente (Uruguai); Humberto Antonio Sierra Porto, vice-presidente (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Nancy López (Costa Rica), Verónica Gomez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile). O juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch não votará porque o regulamento da Corte não permite a participação em casos do país de origem.

Expectativa e possíveis efeitos

A professora de Direito Constitucional Carolina Cyrillo, coordenadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos (NIDH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem a expectativa de que o Brasil será condenado neste caso. Se assim for, a Corte IDH deve exigir mudanças nas leis internas para adequação ou revogação do RDD.

“Não tenho dúvida de que o Brasil vai ser condenado. Provavelmente, a sentença será para adequar a norma interna e retirar todos os entulhos autoritários do nosso Código Penal. No entanto, imagino que, como todas as decisões do sistema interamericano, teremos dificuldade para cumpri-la, já que não temos um sistema eficiente de cumprimento das decisões obrigatórias. Este é mais um caso para superar esse desafio. Espero que, desta vez, tenhamos a compreensão de que assinamos um tratado e devemos cumpri-lo”.

Cyrillo classifica o RDD como uma “tortura legalizada” pelo Estado. “O sistema carcerário brasileiro, por si só, já implica tortura. Mantemos um sistema de tortura carcerária igual ao que se dava na época das ditaduras. Nenhum comportamento de um preso pode justificar um ato de tortura cometido pelo Estado. O regime diferenciado é, no fim, uma forma de legalizar a tortura”, diz.

Melina Fachin, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da instituição, também afirma que espera uma sentença contrária ao Brasil. Ela explica que o RDD é contrário às Regras de Mandela, o conjunto de normas estabelecidos pela ONU para o tratamento de presos e, portanto, fere a Convenção Americana.

“As Regras de Mandela são bastante claras, cuidadosas, ao estabelecer que esse tipo de confinamento só pode se dar em casos excepcionais, como último recurso, pelo menor prazo possível. Não pode ser imposto apenas pela sentença condenatória, sem estar sujeito a revisão. A Lei de Execução Penal tem possibilidades muito mais extensivas do que as Regras de Mandela preveem e, portanto, temos de fato uma inconvencionalidade desse tipo de regime. Imagino que a Corte vá tecer considerações sobre a necessidade de o Estado brasileiro adequar o seu tratamento penal interno, justamente porque a Corte já tem precedentes que consideram que detenções como a que o Norambuena foi submetido é um tratamento cruel, desumano e degradante”, comenta Fachin.

Para a professora da UFPR, mudanças necessárias a partir de uma eventual sentença devem ser feitas via controle de convencionalidade, por meio de recomendações do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, embora não seja o melhor caminho.

“O próprio Judiciário pode fazer as adequações, o controle de convencionalidade, à luz dos casos que possam chegar. Óbvio que o ideal seria que tivéssemos um debate legislativo sobre alterações na Lei de Execução Penal, mas infelizmente não vejo isso acontecendo, porque temos um Congresso que trabalha de uma maneira muito punitivista, vingativa, quando o assunto é Direito Penal. Eu, honestamente, pelo menos com essa configuração legislativa, não tenho muita esperança de um debate desses ir adiante”.

Embora se manifeste contrária à atual aplicação do RDD, Beatriz Corrêa Camargo, professora de Direito Penal na Universidade Federal de Uberlândia, diz não vislumbrar mudanças a curto prazo nas regras de encarceramento, mesmo com uma eventual decisão condenatória ao Brasil.

“Não vejo, caso essa decisão prospere, possibilidade de que algo seja modificado no nosso sistema prisional a curto prazo. Eventualmente, poderia servir de fundamento para que se adentrasse com alguma ação de inconstitucionalidade da Lei de Execução Penal no STF, mas acho difícil”, opina.

Para a professora, a necessidade de aplicar o Regime Disciplinar Diferenciado é, basicamente, um atestado de que o Estado não consegue dar conta de garantir a segurança dentro dos presídios.

“O RDD é uma solução extrema, desnecessária e fácil para um sistema que não tem a estrutura adequada para manter seus aprisionados. É um instituto confuso, porque, como sanção, é dura demais e, como regime de segurança, é mais nocivo para os direitos do preso do que o necessário se tivéssemos a estrutura adequada. Isso poderia ser solucionado com outras ferramentas, que garantissem maior controle sobre o que acontece dentro no sistema carcerário”.

Camargo defende que, para além de qualquer mudança no RDD, é necessária uma urgente reforma no Código Penal brasileiro para que os direitos fundamentais sejam preservados.

 “Uma verdadeira transformação no sistema depende de investimento público e, principalmente, de uma reforma no regime de penas. Não é possível melhorar a estrutura sem pensar em penas alternativas, em negociações adequadas, no tempo de duração das penas. O sistema não comporta o número de presos que temos. Grande parte dos problemas, inclusive esses de segurança dentro dos presídios, são relacionados à superlotação. Se não debatermos seriamente essas questões, dificilmente seremos capazes de oferecer condições humanas e dignas no cumprimento da pena privativa”. 

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