Impactos econômicos do piso da enfermagem

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As dificuldades envolvidas na implementação e financiamento do piso da enfermagem (Lei 14.434/2022) seguem tão grandes quanto em setembro de 2022, quando a lei teve sua vigência suspensa por determinação do ministro Luís Roberto Barroso. Segundo o ministro, a aprovação pelo Legislativo sem avaliação de impacto quanto aos gastos públicos inerentes ao novo piso proposto e sem avaliação quanto aos efeitos sobre o emprego no setor exigem a suspensão até que os devidos estudos sejam realizados.

Desde então, tanto o governo federal quanto os setores afetados têm buscado mensurar o impacto no aumento do nível de gasto, na empregabilidade dos profissionais do ramo e na qualidade dos serviços de saúde oferecidos pelos entes federados. Neste artigo, expomos algumas das conclusões que chegamos em nossa avaliação de impacto do piso da enfermagem.

De modo geral, a lei proposta pode aumentar os salários para parte dos profissionais que hoje ganham abaixo do piso e conseguirem manter seus vínculos de emprego, porém teria impactos negativos substanciais para outra parte muito significativa das categorias profissionais que busca beneficiar. Em algumas regiões do país, não se descarta um cenário de forte aumento do desemprego de enfermeiros e técnicos de enfermagem, com corresponde ajuste do lado da oferta de serviços de saúde, reduzindo-os.

Na verdade, é difícil imaginar que a lei não promoveria o desvio destes profissionais negativamente afetados para a informalidade ou para outras classificações de emprego à margem da lei, embora calcular uma estimativa para esse tipo de efeito de segunda ordem seja muito mais difícil. Fato é que as consequências negativas estimadas são agravadas pelos legisladores não terem sequer previsto na peça legislativa uma transição gradual que facilitasse a reorganização dos trabalhadores e das organizações com e sem fins lucrativos.

A aprovação inconsequente da lei forçou o Poder Executivo a reorganizar todas as suas previsões para o setor de saúde, o Judiciário a exercer um papel mais ativo no controle de atos legislativos, as organizações com e sem fins lucrativos do setor a enfrentar uma incerteza jurídica e contábil imensa em suas projeções e incentivou os trabalhadores afetados a se mobilizarem. Todo esse estresse e urgente organização social poderia ter sido evitado se os legisladores tivessem se preocupado em realizar uma prudente e razoável análise de impacto legislativo antes da aprovação da lei.

Vamos, então, explorar alguns destes impactos, com foco nas organizações do setor privado com e sem fins lucrativos.

Impactos sobre a folha de pagamentos

Mesmo antes da inovação legislativa, segundo dados do CAGED os profissionais formais de enfermagem eram demitidos com salários muito abaixo do novo piso. Inclusive aqueles profissionais mais longevos, que auferem salários maiores que os dos recém-contratados, quando eram desligados em média não haviam ainda alcançado remuneração próxima ao piso proposto. Situação ainda mais dramática para os técnicos em enfermagem, que não alcançavam a paridade em nenhum estado da federação.

Figura 1: Salários médios na admissão (verde) e demissão (vermelho) de trabalhadores com vínculo formal, por estado e ocupação profissional, em 2019 com valores atualizados para R$ de setembro de 2022 pelo IPCA

Fonte: CAGED 2019. Elaboração: AED Consulting/Willian Pereira

Com o novo piso da enfermagem, a necessidade de novo aporte para pagamento da folha salarial seria de R$ 15,8 bilhões por ano, sendo R$ 4 bilhões do setor público, R$ 5,8 bilhões do setor privado sem fins lucrativos e R$ 5,9 bilhões do setor privado com fins lucrativos. O aumento real total sobre a folha de pagamentos desses setores precisaria ser de +16%, +23% e +26%, respectivamente, para que não houvesse queda no número de vínculos formais.

Porém, para que não houvesse demissões com estes percentuais de aumento, os recursos precisariam ser perfeitamente alocados em cada hospital e cada região que esteja pagando abaixo do piso. Se mudarmos para um cenário um pouco mais realista de um aumento uniforme em todas as regiões e estados, seria necessário um aumento real uniforme de +50% sobre a folha de pagamentos das categorias afetadas para que não houvesse nenhuma demissão. Um aumento real deste nível e feito de forma abrupta está fora da realidade de qualquer setor econômico.

No setor público, há também um problema não considerado na proposta legislativa: o dos aposentados na modalidade de paridade salarial, de forma que o novo piso da enfermagem terá algum reflexo também com gastos de aposentadorias. Não foi possível estimar estes valores em nosso estudo por indisponibilidade de base de dados adequada à questão.

Um outro tema oculto são os contratos temporários de trabalho, que muitas vezes servem de pretexto para a não realização de concursos públicos e a submissão dos profissionais à legislação local do município ou estado, usualmente menos generosa. A aprovação do piso fora das capacidades de pagamento dos entes federados pode aprofundar o desvio de finalidade desses contratos, realidade já conhecida em nosso país.

Por fim, cumpre ainda destacar que a proposta aumentaria de imediato os custos dos estados e municípios brasileiros que, precisando obedecer a limites de despesa com pessoal da Lei de Responsabilidade Fiscal, seriam forçados a demitir, sob pena de cometerem crime de responsabilidade. Não ajuda que estejamos em um contexto das finanças públicas no qual vários estados já se encontram em situação irregular, quando não na iminência de estourar o teto da lei, como é o caso de Rio Grande do Norte e Minas Gerais.

Impactos sobre o mercado de trabalho

A literatura mais atualizada na ciência econômica acerca dos efeitos de políticas de pisos salariais traz considerações importantes para avaliarmos as possíveis consequências de uma nova política de piso salarial. O próprio Prêmio Nobel em Economia de 2021 laureou o economista David Card pelos métodos estatísticos que desenvolveu para avaliar o impacto de pisos salariais[1] – seu parceiro de pesquisa, Alan Krueger, muito provavelmente teria recebido o Nobel na mesma ocasião, mas faleceu em 2019.

Na década de 1990 havia relativo consenso de que pisos salariais inevitavelmente levariam ao desemprego, ficando pendente de estudo apenas o tamanho do impacto. Quase 30 anos depois e dotada de métodos estatísticos superiores, mais dados e teoria mais refinada, a New Minimum Wage Research demonstrou que estes efeitos negativos podem de fato ocorrer, mas nem sempre, e suas magnitudes podem variar muito dependendo da política de piso salarial adotada.

Em síntese, hoje a pergunta mais relevante é qual o tamanho do aumento que um piso salarial pode estabelecer sobre os salários vigentes antes que efeitos significativos e negativos sobre o emprego apareçam e destruam parte dos efeitos positivos sobre os salários de quem permanecer empregado após o piso.[2]

Assim, um primeiro dado para avaliarmos a possibilidade e a magnitude de efeitos negativos sobre o emprego devido ao piso da enfermagem é a relação entre o piso nacional proposto e os salários vigentes no país. O dado mais preciso disponível à época do nosso estudo era a RAIS de 2020, que contém informações salariais de todos os trabalhadores com vínculo formal de trabalho.

O gráfico a seguir resume a distribuição salarial dos enfermeiros por região e por estado, destacando o percentual de trabalhadores formais que ganham abaixo do piso. Os valores foram atualizados para novembro de 2022 para corrigir efeitos inflacionários.

Na média nacional, 65% de todos os vínculos formais recebem salários abaixo do novo piso proposto. São 2 em cada 3 trabalhadores formalmente contratados nas categorias afetadas pelo novo piso.

O setor privado com e sem fins lucrativos de parte dos estados das regiões Norte e Nordeste chegam a ter mais de 90% dos vínculos formais de trabalho abaixo do piso salarial proposto. A média da região Nordeste para todos os vínculos de enfermagem é que 71% deles recebem abaixo do piso. Enquanto isso, no Sul do país a média é de apenas 51%.

Em especial, o piso definido para os técnicos de enfermagem está muito fora dos salários praticados no setor por todo o país, principalmente nos estados mais pobres, colocando-os em sério risco de substituição do trabalho ou outro tipo de reorganização. Por outro lado, o piso proposto para os auxiliares de enfermagem não destoa tanto dos salários usualmente praticados pelo país e provavelmente o setor conseguirá se reorganizar para entrar em conformidade com a lei no caso deles sem maiores dificuldades.

Assim, enquanto esses se beneficiariam de salários mais uniformes e maiores, aqueles passariam por forte instabilidade, podendo amargar prejuízos significativos para a renda familiar, resultado do novo piso proposto.

Estimamos que, caso o setor tenha margem muito baixa para acomodar aumentos da folha de pagamento (inferior a um aumento real de ~4%), a maioria da redução de postos de trabalho estará concentrada em técnicos de enfermagem, com redução de até -25% dos vínculos formais.

Já se o setor tiver uma capacidade maior de acomodar aumento na folha de pagamento (aumento real superior a ~4%), os enfermeiros passariam a ser a categoria mais prejudicada com redução de vínculos de trabalho. De modo geral, identificamos que quanto maior a capacidade de cumprir o piso em um estado do país, mais a redução de postos de trabalho se concentrará em enfermeiros. Quanto menor a capacidade orçamentária de cumprir o piso, mais a redução de postos de trabalho se concentrará em técnicos de enfermagem. Em todos os cenários, estimamos que os estados mais afetados serão os da região Norte e Nordeste, e que as cidades do interior e com população menor que 400 mil habitantes serão mais afetadas que as capitais e grandes cidades.

O leitor interessado em checar essa mudança no perfil de redução de vínculos dependendo dos valores do piso salarial e da capacidade das organizações com e sem fins lucrativos do setor de saúde de acomodar aumentos da folha de pagamento pode acessar uma versão preliminar interativa do modelo que construímos acessando este link.[3]

Importância da AIL

Os profissionais de enfermagem são de importância inquestionável para a sociedade brasileira e ademais para atravessarmos a tortuosa pandemia. Nosso estudo não teve como objetivo questionar essa importância. Nosso propósito foi avaliar quais são as condições reais disponíveis hoje no Brasil de atender a lei de piso salarial com os valores propostos e possíveis limitações orçamentárias das organizações contratantes. Qualquer julgamento de valor nosso ou de qualquer pessoa não será suficiente para gerar provisões financeiras a partir da boa vontade, e fazer crer que uma coisa decorre da outra seria inconsequente e irresponsável em matéria de política pública.

O conteúdo da lei afetará a vida de mais de 1 milhão de profissionais de saúde, a dinâmica do mercado de trabalho do qual dependem milhares de organizações, os preços dos serviços de saúde para convênios e pacientes individuais que utilizam a saúde suplementar, e a capacidade de ofertar serviços de saúde de todas as organizações do setor no Brasil, com e sem fins lucrativos, pública ou privada. A grande quantidade de pessoas afetadas e o montante muito alto de recursos mobilizados nesta política exigiriam uma Análise de Impacto Legislativo para antever a extensão dos impactos da lei.

Como bem apontou o ministro Fux, é dever do Legislativo avaliar a redação proposta em lei tendo em vista suas consequências antes de deliberar por sua aprovação final. No RE 958.252, em que foi relator, ensinou:

O ônus de demonstrar empiricamente a necessidade e adequação da medida restritiva a liberdades fundamentais para o atingimento de um objetivo constitucionalmente legítimo compete ao proponente da limitação, exigindo-se maior rigor na apuração da certeza sobre essas premissas empíricas quanto mais intensa for a restrição proposta.

No caso da proposta de piso salarial, é razoável supor que o objetivo seja aumentar os salários e o bem-estar das categorias profissionais afetadas. Porém, há muitos desenhos legais alternativos que poderiam ser apresentados com o mesmo objetivo e não tiveram qualquer espaço no estudo do projeto de lei – porque não houve estudo –, nem no seu trâmite, nem na sua aprovação.

O valor do piso salarial nacional de R$ 4.750 foi definido de forma arbitrária, sem atenção para a situação das contas públicas e do mercado e qual o impacto percentual de aumento que provocaria sobre o setor. Uma lei de pisos salariais responsável com avaliação de consequências exigiria – no mínimo do mínimo – olhar a realidade econômica desigual do país e considerar pisos factíveis com a realidade do setor no Brasil.

Entendemos que uma Análise de Impacto Legislativo completa é indispensável para desenhar uma lei que atinja os objetivos propostos sem desestruturar os níveis de emprego, formalização, contabilidade e preços do mercado e do setor público hoje. Fica pendente esta consciência crescer também em nossos representantes do Legislativo.

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Este artigo é um extrato adaptado de um parecer econômico conferido à CNSaúde referente à ADI 7.222.

[1] CARD, David; KRUEGER, Alan B., Minimum Wages and Employment: A Case Study of the Fast-Food Industry in New Jersey and Pennsylvania, The American Economic Review, v. 84, n. 4, p. 772–793, 1994.

[2] MANNING, Alan, The Elusive Employment Effect of the Minimum Wage, Journal of Economic Perspectives, v. 35, n. 1, p. 3–26, 2021.

[3] Versão Preliminar – Piso Salarial Brasil – aplicativo web disponível em https://bit.ly/43k0ODU

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