O machismo nosso de cada dia

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O primeiro debate de candidatos à Presidência da República transcorria com a tensão natural de outros quando o atual presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, usou tática antiga, que é atacar as mulheres quando se vê questionado por alguma delas. No referido episódio, o presidente esbravejou misoginia a uma jornalista bem-sucedida quando esta perguntou a outro candidato se o já conhecido comportamento anticiência do presidente poderia ser associado à inédita queda na vacinação geral da população infantil que observamos hoje no Brasil.

A partir daí, vimos um Bolsonaro descontrolado esbanjando agressividade contra uma mulher. Nada de novo, já que não é a primeira vez que o Brasil assiste a uma agressão pública do presidente contra mulheres que ousam questioná-lo. O padrão é o mesmo entre ele e seus apoiadores: uma mulher questiona corretamente alguma de suas ações e a resposta vem em forma de gritos, desqualificação, agressão e humilhação. O conteúdo do questionamento, entretanto, jamais é respondido.

Qualquer espectador minimamente informado desses eventos poderia associá-los à questão de foro psicanalítico. Mas como não sou especialista no tema, prefiro transitar na minha zona de conforto, tentando interpretar esses episódios para além de questões freudianas ou de um possível terror de Bolsonaro e seus apoiadores em relação a mulheres que os criticam. Sendo assim, volto aqui às discussões que tento promover neste espaço. Este e outros episódios parecidos me chamam atenção porque exacerbam uma visão de mundo, ou melhor, uma visão de Brasil muito peculiar a um estrato da sociedade do qual Bolsonaro faz parte e que passou despercebido e com pouca atenção nas últimas quatro décadas. Na minha interpretação, o comportamento bolsonarista é, além de muitas outras coisas, um movimento de resistência a princípios fundamentais da nossa democracia pós-1985, e por consequência disso, de nossa Constituição. Não é a primeira vez que menciono a ideia aqui nesta coluna.

Há farta literatura nas ciências sociais, especialmente nas áreas de movimentos sociais e direitos humanos, sobre como a busca pela igualdade de condições tem se desenvolvido pelo mundo. Aqui neste país ao sul do globo, sabe-se que o campo dos movimentos sociais vem se ampliando, com destaque na luta social, cultural e política. Desde 1960 até hoje, diversos movimentos organizados têm surgido e se colocado diante da sociedade em busca de atenção e de uma mobilização capaz de promover políticas públicas voltadas a eles. E é aí, a meu ver, que está a chave da questão.

Na Constituição de 1988, inúmeras políticas públicas levaram ao reconhecimento de direitos sociais demandados por movimentos sociais e culturais, que se ampliavam e eram suportados por políticas públicas que nasciam progressivamente. Pesquisadores e formuladores de políticas públicas buscaram, portanto, reconhecer a diversidade desses movimentos e ações civis coletivas, assim como de suas articulações com partidos e lideranças políticas.

Entre muitas pautas, a questão de gênero, especialmente ligadas a políticas para mulheres, desenvolveu-se muito. Em 2022, temos uma sociedade altamente complexa, e mesmo com resistente desigualdade de gênero, já é mais comum encontrar mulheres capazes de apontar dedos a políticos como Jair do que se via na infância de minhas avós. Quase 40 anos de Constituição promoveram mudanças significativas no tecido social brasileiro e é a isso que o bolsonarismo se opõe. Na prática, uma mulher livre, mais escolarizada, autônoma e capaz de competir com igualdade de condições com homens é uma ameaça para quem não consegue acompanhar as mudanças civilizatórias do mundo. Os mais ignorantes reagem com agressão.

Com essa deixa, volto para o objetivo original desta coluna: as eleições de 2022. Não seria difícil prever que o espetáculo lamentável do presidente durante o debate do último domingo é muito ruim para ele, do ponto de vista eleitoral. Primeiro, porque as mulheres são a maioria na sociedade brasileira, portanto, como se diz representante de um grupo que governa apoiado em excelentes quadros técnicos e gestores, o presidente não poderia ter desconsiderado esse detalhe demográfico básico.

Segundo, porque os especialistas têm apontado que as mulheres são o grupo que mais rejeita Bolsonaro, e há razões para isso para além das questões de foro íntimo e freudiano: o desemprego entre elas foi maior, especialmente na pandemia; seus filhos ficaram dois anos fora das escolas durante os quais o presidente se ausentou como responsável e pouco se esforçou para devolver um mínimo contato, nem que fosse via internet; são as mulheres que ganham menos, portanto são um grupo que tem sofrido muito com a alta dos preços dos alimentos e da inflação doméstica.

Finalmente, não é forçoso lembrar que, como também são tradicionais cuidadoras de filhos e idosos da família, o atraso e o descaso em relação à vacinação potencializou o afastamento deste grupo do presidente da República. Mas são elas também as mais escolarizadas, as que mais têm se qualificado nas últimas décadas, fruto das mudanças consolidadas nas políticas que vieram no pós-Constituição de 1988 e a despeito da grande diferença salarial em relação aos homens – que, aliás, tem sido frequentemente questionada.

Nesse sentido, não é à jornalista que Bolsonaro e os bolsonaristas se opõem, mas sim às transformações positivas que a Carta Constitucional objetivou construir para diversos grupos, excluídos do contrato social, mas que passaram a ter legalmente espaço para reivindicar políticas públicas e mudanças por mais justiça social. Resultado esperado de processos civilizatórios. Felizmente, houve grande repúdio por parte de diversos grupos, até mesmo entre os apoiadores do presidente. Mais uma evidência de que o reacionarismo não tem passe livre no Brasil pós-democratização.

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