Os arquitetos e a reserva técnica

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O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) do Brasil vem recolocando em pauta um tema relevante sobre um aspecto da remuneração dos profissionais de arquitetura e, com isso, está fomentando um dos debates mais profícuos em matéria de compliance dos últimos tempos, mas que passou despercebido por profissionais do direito (com exceção de alguns que foram diretamente envolvidos).

O tema em questão é o da reserva técnica, prática ainda muito comum na contratação de arquitetos em que estes ganham comissionamentos dos fornecedores que indicam a seus clientes.

Atualmente, há dois marcos normativos relevantes. De um lado, na Lei 12.378/2010 (Lei da Arquitetura e Urbanismo), o art. 18 assim dispõe:

“Constituem infrações disciplinares, além de outras definidas pelo Código de Ética e Disciplina: VI – locupletar-se ilicitamente, por qualquer meio, às custas de cliente, diretamente ou por intermédio de terceiros”. Em complemento, o Código de Ética da profissão também dispõe que: “3.2.16. O arquiteto e urbanista deve recusar-se a receber, sob qualquer pretexto, qualquer honorário, provento, remuneração, comissão, gratificação, vantagem, retribuição ou presente de qualquer natureza – seja na forma de consultoria, produto, mercadoria ou mão de obra – oferecidos pelos fornecedores de insumos de seus contratantes, conforme o que determina o inciso VI do art. 18 da Lei n° 12.378, de 2010”.

O entendimento atual, portanto, é de uma vedação ampla e irrestrita da prática do comissionamento, que constitui uma infração ética.

Após debates sediados em Cuiabá, em setembro de 2022, o CAU fez uma convocação a seus membros para que opinassem sobre o assunto, de forma anônima, e em novembro daquele ano o assunto foi pauta do 23º Seminário Regional da Comissão de Ética e Disciplina do CAU em Porto Alegre.

No debate do Seminário Regional (disponível no YouTube), foram apresentadas as respostas à consulta pública e anônima do CAU. Com cerca de 3.500 participantes, o levantamento trouxe dados interessantes. Em primeiro lugar, quase 100% dos profissionais declaravam ter conhecimento de que era uma reserva técnica (RT), mas houve divergência sobre a forma como os participantes a definiam.

Cerca de 50% deles concordavam com a definição de RT como sendo a “remuneração decorrente da ação de assistência técnica, assessoria e/ou consultoria ao cliente na aquisição de bens e serviços técnicos”, mas 33% dos profissionais identificam a reserva técnica como sendo a “remuneração às custas do cliente, indiretamente ou por intermédio de terceiros, sem o conhecimento e/ou conhecimento do cliente”, sendo que 15% também identificava na RT uma “remuneração decorrente dos programas de marketing de afiliados dos fornecedores de bens ou serviços de arquitetura”.

Dos participantes, a maioria (62%) afirmou já ter recebido reserva técnica, e parte semelhante também afirmou que a RT gira em torno de 5% a 10% dos valores dos bens ou serviços indicados.

As indicações de mobiliário, marcenaria, acabamento, iluminação e decoração são as principais fontes de pagamento de reserva técnica; 36% dos arquitetos que participaram da pesquisa afirmou que recebia RT com conhecimento do cliente, mas 28% dos arquitetos receberiam sem conhecimento por parte do cliente – sendo que quase 50% dos arquitetos afirmou que a RT não é parte essencial de sua remuneração. Por fim, parte expressiva dos participantes – quase 70% – manifestou interesse em uma reforma do Código de Ética para que a prática seja reconhecida e regulamentada e não apenas proibida.

Os debates, que foram liderados por membros dos CAUs de cada estado, seguiram por um caminho que parece indicar a manutenção da proibição, mas não houve decisão tomada, apenas o encaminhamento para a Comissão de Ética e Disciplina do CAU Brasil para que o assunto seja aprofundado tanto nos julgamentos quanto para eventual reforma normativa e adoção de políticas educacionais.

Um dos grandes méritos do debate foi ressaltar a questão consumerista que se impõe ao arquiteto quando, por certo, ele presta serviço a consumidor – pela excelente fala de Eduardo de Oliveira Paes, assessor jurídico do CAU. Ficou claro que o assunto da RT pode esbarrar contra os princípios da proteção ao consumidor, em especial quando ela é praticada sem o conhecimento e consentimento do consumidor. Aqui, o arquiteto corre o risco de cometer o crime (de menor potencial ofensivo) do artigo 66 do Código de Defesa do Consumidor, tipificado como “Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços”.

Neste caso, porém, podemos ainda falar da ocorrência de “kick-off”, “bola” ou, mais precisamente, de corrupção privada, porque o consumidor está pagando, sem saber, um sobrepreço no serviço que contratou – ele “paga duas vezes” pelo serviço do arquiteto. Esse incentivo perverso estimula arquitetos a praticar preços predatórios nos “serviços de entrada” (elaboração de projeto técnico, por exemplo), na expectativa de alavancarem sua remuneração por meio das reservas técnicas. O problema é que, ao não divulgarem aos clientes essa informação, eles podem incorrer em conduta que não é considerada crime, mas tende a ser criminalizada em breve, sob o título de “corrupção privada” ou “infidelidade patrimonial”. Neste tópico, destaco que o CAU/BR tem interesse maior em acompanhar a evolução do debate legislativo na Câmara (PL 4480/2020 e PL 11171/2018) e no Senado (PL 455/2016).

A discussão muda totalmente de figura, porém, quando o consumidor e cliente do arquiteto entra em acordo sobre a cobrança da comissão e esta passa a integrar a remuneração do arquiteto. Ao meu ver, nesses casos, a conduta não deveria ser considerada uma infração ética e também não deveria adentrar a esfera criminal, mas para isso, além de ser necessária uma alteração no Código de Ética do CAU – exatamente o que está posto em debate – também seria preciso mudar a cultura de contratação para que essa informação seja explicitada em um documento contratual formalizado, ou, ao menos, discriminada na proposta.

Mais que isso: verdadeira transparência com o consumidor exigiria revelar, de forma clara, percentuais de indicação e dar a ele a oportunidade de arcar diretamente com essa quantia, mediante desconto em loja. Isso faria com que a RT fosse convertida em uma taxa de acompanhamento de obra, por exemplo. E é também importante destacar quais serviços dispostos na proposta/no contrato integram a responsabilidade técnica do arquiteto (cujo depósito é dever do arquiteto) e quais não integram, mas ainda assim compõem sua atividade comercial.

Outro problema envolve grandes fornecedores de materiais e serviços, que muitas vezes criam sistemas de pontuação ou bonificação aos arquitetos indicantes, criando uma camada de distanciamento entre o ato de indicar e a efetiva “bonificação”, mas ainda assim constituindo prática de reserva técnica. Aqui, além de o poder de barganha do fornecedor ser usualmente maior, ainda há o risco de o incentivo ser utilizado por fornecedores para ter acesso aos dados dos clientes dos arquitetos, o que pode ser feito sem interesse legítimo ou outra base legal que justifique o tratamento desses dados, sob a óptica da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

De toda forma, o profissional liberal deveria ser livre para estruturar sua estratégia de negócios, mas sem sacrificar, de um lado, a transparência (principal elemento na relação com o consumidor) e, de outro, a concorrência. Isso porque não pode fazer parte de seu acordo com o fornecedor algum tipo de ajuste que implique uma concorrência desleal com outros arquitetos ou que, em uma escala maior dentro de um mercado relevante específico, resulte em conduta anticompetitiva (limitando o acesso de novos arquitetos, por exemplo, a determinada cartela de fornecedores, seja por recusa de venda, seja pela prática de preços divergentes e abusivos).

Por fim, arquitetos que atuam em relações não consumeristas (que atendem empresas, em especial que atendem empresas do setor imobiliário) devem cuidar para que acordos dessa natureza não gerem efeitos concorrenciais adversos.

De toda forma, a evolução do debate no CAU/BR será frutífera e de grande relevância para outros profissionais liberais, como os próprios advogados.

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