Recursos defensivos e processos penais eternos

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Há dez anos, Vladimir Aras lançou um desafio: “Apontem no direito comparado um país, um só, no qual haja mais recursos à disposição da defesa do que no processo penal do Brasil”[1]. Seja como for, os números nacionais de fato impressionam[2]. No rito bifásico do Tribunal do Júri, o sistema jurídico brasileiro disponibiliza à defesa, comumente[3], ao menos[4] 46 recursos. Em procedimentos monofásicos, por não existir impugnação contra o recebimento da denúncia, o número de recursos cabíveis cai para, ao menos, 23. Para ilustrar, elaborei a seguinte tabela:

Crédito: Divulgação

Parece ser endêmica a irracionalidade de um sistema recursal que abre tão fartas avenidas procedimentais de impugnação. Mas o número abstrato é apenas a parte rasa do problema. Perceba: 40 dos 46 recursos disponibilizados no rito do júri e 20 dos 23 oportunizados em ritos monofásicos são dirigidos aos tribunais superiores. Daí se deduz outro dado interessante: dos 23 recursos previstos nos procedimentos monofásicos, apenas três viabilizam o reexame de fatos e provas (apelação, circunstanciais embargos infringentes e excepcionais embargos declaratórios com efeitos infringentes). No júri, considerando que a única análise de mérito se sujeita à soberania dos jurados, nenhum dos 46 recursos tem a prerrogativa de ativar o reexame de fatos e provas especificamente quanto ao juízo condenatório.

Era de se esperar que o desequilíbrio acima apontado tornasse STJ e STF os principais vilões pela ofensa à duração razoável do processo, sobretudo quando, ao mesmo tempo, constata-se ostensiva política de priorização da primeira instância, com 85% dos servidores do Poder Judiciário nela lotados[5]. Curiosamente, não é o caso. Dados do CNJ apontam que o excesso de prazo para formação da culpa costuma ocorrer nas instâncias ordinárias. Trata-se, claro, de estrutura estatal deficitária. Ainda assim, o sucessivo manejo de recursos perante os Tribunais Superiores, nos termos da tabela acima, e sem qualquer má-fé processual, presta-se, ao menos contemporaneamente[6] à interposição, a prorrogar o início da execução da pena. O fato de processos demorarem mais nas instâncias ordinárias não implica a conclusão de que existe trâmite ágil no STJ e no STF. Lá, também demoram.

Isso sugere que parte da ineficiência da Justiça Criminal deriva do irracional gerenciamento de confiança do sistema jurídico brasileiro. Ao permitir tamanho desequilíbrio entre quantidade de recursos cabíveis nas instâncias ordinárias e nos tribunais superiores e, ao mesmo tempo, estabelecer o trânsito em julgado apenas após o esgotamento das insurgências direcionadas ao STJ ou ao STF o sistema recursal brasileiro transmite mensagens claras aos seus destinatários. Aos defensores, um incentivo: “se quiserem e puderem, temos aqui ao menos 20 recursos, sem reexame de fatos e provas e com baixa chance de êxito[7], postos a serviço da prorrogação da execução da pena”. Aos jurados, juízes de primeira instância e desembargadores, um desalento: “as decisões de vocês não valem quase nada”.

Mas aprofundemos. No mundo dos fatos, a abstração dos recursos cabíveis é assimetricamente distribuída. Há variáveis sociológicas e econômicas. Eventual papel da defesa na demora de processos criminais deve ser cotejado com a distinção entre cabimento e interposição. Nem todos os defensores dispõem-se a ou têm os meios materiais de ativar todos os recursos previstos em lei. No interior do Brasil, com a atuação de defensores dativos ou advogados constituídos menos remunerados, muitas questões criminais resolvem-se com a sentença condenatória ou, quando muito, no recurso de apelação. O STF e o STJ são um luxo distante da realidade de milhões de brasileiros[8]. Réus sem respaldo econômico têm poucas chances reais de esgotarem todos os recursos cabíveis nas instâncias superiores[9]. Para que réus com respaldo econômico o façam, basta que queiram.

Sem qualquer má-fé, e mesmo com a sistemática da repercussão geral e o fenômeno da jurisprudência defensiva[10], defesas que reúnem condições econômicas e técnicas de esgotar todos os recursos encontram no sistema jurídico fartas ferramentas para satisfazer-se. Tanto pior quando se reputam na prerrogativa de proceder a beligerâncias em audiências e plenários de júri, abandonos de plenário, insistência recursal contra precedentes vinculantes, sucessivos embargos declaratórios protelatórios, pedidos infundados de adiamento de atos processuais e petições longas recheadas com desproporcional criatividade meritória e/ou suscitação de nulidades flagrantemente descabidas. No cenário brasileiro, defesas que confundem combatividade com vale-tudo processual têm ainda mais chances de prorrogar indefinidamente o prazo para formação da culpa. Sem inibições e sanções, a má-fé processual é um jogo que compensa.

Mas seria ingênuo implorar, em um tipo de autocontenção postulatória, que partisse dos próprios defensores a iniciativa de confrontar os incentivos que recebem para debater, de boa ou má-fé, as causas até o esgotamento de todos os recursos legalmente previstos. O desestímulo ao abuso de direito de defesa deve partir das instituições jurídicas, mediante reequilíbrio legislativo do irracional gerenciamento de confiança do sistema brasileiro e aplicação judicial de conceitos como preclusão, trânsito em julgado e sanção processual.

Mesmo diante das assimetrias retratadas, seria bastante efetiva a edição de emenda constitucional que fixasse a execução da pena após a derradeira oportunidade de exame de fatos e provas. Mas tal ideia, tão velha[11] quanto promissora, encontra ampla resistência[12]. No estágio atual, há apenas paliativos — e mesmo eles são utilizados com demasiada timidez. Caberia ao Poder Judiciário inibir, em cada processo, de forma implacável, comportamentos disruptivos. No entanto, antes seria necessário estabilizar a cultura de imediata certificação do trânsito em julgado ao primeiro sinal de intento protelatório e superar a infundada hesitação na aplicação, no processo penal, de multas por litigância de má-fé.

A inefetividade do sistema de Justiça Criminal não é culpa exclusiva de ninguém. Trata-se de questão multifacetada erguida sobre diversas causas. Nesse jogo, inexiste parte que esteja simplesmente imune a reprovações morais externas, venham elas da sociedade, venham elas de agentes de outra carreira, dentro de seus limites de liberdade de expressão. Certas defesas têm, sim, responsabilidade direta por ofensas à razoável duração do processo. Criticá-las é legítimo e necessário. Mas tal responsabilidade só se concretiza em razão da histórica complacência do Estado.

[1] Disponível em <https://vladimiraras.blog/2012/09/09/a-nova-doutrina-brasileira-do-habeas-corpus/> Acesso em 30/5/2022.

[2] Para além desses recursos, o sistema brasileiro autoriza à Defesa, a qualquer tempo, o ajuizamento de habeas corpus – ação constitucional que não permite à acusação o exercício do direito contraditório e que, não raro, é manejada em processos com réus soltos, ora para discutir teses com impacto meramente indireto no estado de liberdade do paciente – como, por exemplo, nulidades processuais, competência, recebimento da denúncia –, ora como meios de impugnação substitutivos de toda sorte de recursos e, até mesmo, de revisão criminal.

[3] Considerei apenas recursos comumente utilizados nos processos penais cotidianos, o que exclui, por exemplo, correição parcial e carta testemunhável. Desconsiderei a polêmica doutrinária sobre a natureza jurídica dos embargos declaratórios – se autêntico recurso ou não. Para nossa análise, isso é irrelevante: havendo (fartas) hipóteses de cabimento, trata-se de instrumento com inequívoca capacidade de prolongar o trânsito em julgado.

[4] Foi descartada, aqui, a oposição dos chamados “embargos dos embargos”, embora já validados pela jurisprudência – o que aumentaria o número de recursos disponíveis para 66 no rito do júri e 33 nos procedimentos monofásicos.

[5] Foram avaliados os dados disponíveis no “Justiça em Números” dos últimos cinco anos. Os dados citados no presente artigo estão especificamente no Justiça em Números 2021 (ano-base 2020), disponível em < https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/>. Acesso em 30/5/2022.

[6] Desde ao menos 2005, parte da jurisprudência do STF (HC 86.125/SP) e, depois, do STJ, passou a admitir a retroação do trânsito em julgado ao momento do primeiro recurso inadmissível. A medida foi tomada como tentativa de impedir prescrições penais. Quanto ao início da execução da pena, nada se alterou. Mesma lógica se aplica às alterações do Pacote Anticrime que fixaram não correr a prescrição na pendência de recursos inadmissíveis aos Tribunais Superiores.

[7] Com as cautelas de plataforma que não discerne entre a natureza cível ou criminal das causas, a “Corte Aberta” do STF aponta que, de 2011 a 2021, o insucesso de ARE´s variou entre 98,8% e 99,3%. (https://transparencia.stf.jus.br/extensions/taxa_provimento/taxa_provimento.html). Quanto a RE’s, o insucesso, no mesmo período, variou entre 78,6% e 90,5%. Em dados especificamente criminais, Barroso e Schietti, quanto a REsp’s e AREsp’s, apontam taxas de êxito de 0,62% de absolvições e 1,02% de substituições de pena entre 1/9/2015 e 31/8/2017 (Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/02/luis-roberto-barroso-e-rogerio-schietti-execucao-penal-opiniao-e-fatos.shtml). Em artigo intitulado “A Presunção de Inocência Libertada” (JOTA), Rafael Mafei pondera que o estudo completo do STJ estabelece que 6,44% dos recursos e 4,57% a alteração do regime prisional. Mafei, ainda, parece endossar a conclusão de Thiago Bottino de que “números expressivos de ilegalidades” são cometidos pelas instâncias ordinárias. Tal análise, todavia, pressupõe compromisso com certos padrões interpretativos e reconhecimento de conflito de interesses entre instâncias ordinárias e superiores, o que foge ao propósito deste artigo.

[8] Em 2020, dos 1,9 milhão de novos casos criminais, 63,2% (1,2 milhão) aportaram no primeiro grau de jurisdição, 29,3% (567,6 mil) no segundo grau de jurisdição, 0,6% (11 mil) nas turmas recursais e 133,4 mil (6,9%) nos Tribunais Superiores.

[9] Aos réus sem respaldo econômico, três são as possibilidades de acesso intensivo aos Tribunais Superiores, todas baseadas na roleta da sorte. Ou são agraciados com atuação pro bono. Ou praticam fato criminoso em regiões do país nas quais a Defensoria Pública está mais bem estruturada, inclusive com condição material de acesso recorrente aos Tribunais Superiores. Ou a eles se nomeia defensor dativo que reúna disposição e técnica para interpor gratuitamente dezenas de recursos em Brasília.

[10] Quaisquer que sejam os fundamentos formais utilizados para a inadmissão de REsp e RE na segunda instância, é vedado aos respectivos Tribunais fazerem juízo de admissibilidade sobre os consequentes AREsp e ARE. Tais recursos necessariamente sobem. Nesse ponto, calha registrar que a imposição de filtro de admissibilidade ao STF, baseado na relevância da matéria discutida, implicou efeitos meramente simbólicos. A despeito da proposta original de priorizar, nas instâncias ordinárias, o juízo de repercussão geral sobre o juízo de admissibilidade, de modo a encerrar o debate mediante agravo interno nos tribunais de segunda instância, inúmeros recursos especiais e extraordinários inadmissíveis continuam a subir ao STJ e ao STF, via ARESP e ARE. Isso vale especialmente em matéria criminal, em que as particularidades dos casos concretos ganham ainda mais relevância, fazendo lembrar a lição de Aristóteles de que a infinita indeterminação do particular obsta qualquer ciência. Abordando a sistemática de repercussão geral, Virgílio Afonso da Silva diagnosticou que “o STF parece não estar disposto a abrir mão da sua competência para decidir sobre tudo” (SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. EDUSP, 2021, p. 576).  Não à toa, ainda em 2018, Barroso, com base em dados empíricos, decretou o “fracasso” da repercussão geral. Cf. em <http://www.osconstitucionalistas.com.br/balanco-de-dez-anos-da-repercussao-geral-o-que-nao-funcionou-e-como-aprimorar-o-sistema>. Acesso em 30/5/2022.

[11] Nesse sentido, por exemplo, em sua redação original, a “PEC Peluso”, de 2011: <https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2011/06/07/peluso-pec-que-antecipa-execucao-de-sentenca-revoluciona-judiciario>. Considerações sobre a adequação ou não do texto da PEC não serão aqui realizadas.

[12] Veja-se, nesse sentido, a matéria “Prisão após 2º grau só poderia ser permitida com nova Constituição, dizem professores”. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-nov-09/prisao-grau-permitida-constituicao> (Acesso em 30/5/2022).

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