Regulação da comunicação: um outro olhar para o jardim

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Como definir a comunicação social? Ela é um direito fundamental, um bem público ou uma estrutura fundante das sociedades democráticas? Quais são os direitos e deveres que compõem a comunicação social, em seus diversos setores e instituições, e como o Estado e o Direito devem atuar nessa área? Em tempos de oligopólios midiáticos, Big Tech, vigilância, discursos de ódio, desinformação e aumento da violência contra veículos de imprensa e jornalistas, enfrentar essas questões é tarefa cada vez mais incontornável a acadêmicos, juristas, comunicadores e demais públicos.

Para facilitar esta breve análise de um tema bastante complexo, podemos dividir a história dos direitos de expressão, informação e comunicação e das políticas de comunicação nas democracias ocidentais modernas em três grandes fases. Essas fases revelam disputas entre três paradigmas de regulação, e que, por sua vez, articulam diferentes respostas às perguntas acima: o paradigma liberal, o paradigma social e o mais recente paradigma ambiental ou decolonial.

A partir do paradigma liberal, aprendemos que a liberdade de expressão e os direitos de comunicação são frutos de entendimentos e lutas sociais centenárias. Nos primórdios da modernidade, a liberdade de crença, de manifestação, de pensamento e o direito de petição são reconhecidos como liberdades de quaisquer indivíduos e da sociedade contra os abusos de autoridades.

Um dos primeiros documentos que consagram o direito de petição ao rei é a Bill of Rights inglesa de 1689, em seu artigo 5o, “sendo ilegais as prisões e vexações de qualquer espécie que sofram por esta causa”. A liberdade de imprensa é consagrada na Declaração de Direitos de Virgínia (1776), num Estado republicano, sendo considerada “um dos mais fortes baluartes das liberdades do Estado e só pode ser restringida pelos governos despóticos” (artigo 14). Neste mesmo documento se consagra também a liberdade de crença, consciência e culto, sendo “dever recíproco de todos os cidadãos praticar a tolerância cristã, o amor à caridade uns com os outros” (artigo 18). De todo modo, talvez por definir essas liberdades em oposição a outros poderes, e pela conexão com as liberdades econômicas, o paradigma liberal tenha mais dificuldades de harmonizá-las com outras liberdades e direitos recíprocos, individuais ou coletivos, como a privacidade, a honra, a imagem e a dignidade.

Habermas [1] foi um dos primeiros a identificar que é nesse mesmo século 18, dentro do paradigma liberal, que se formam as primeiras noções de “público” para além da autoridade estatal, o que garantiu primordialmente a autonomia privada de proprietários burgueses a constituir os mercados capitalistas, incluindo a profissionalização e institucionalização da imprensa. Garantiu também a constitucionalização da “opinião pública”, da “vontade geral”, ou da “publicidade” como soberania popular, direito de crítica dos cidadãos e exigência de legitimação dos poderes estatais e sociais. Por isso podemos dizer que a noção de comunicação social tem origem na perspectiva liberal de esfera pública em seus primeiros embates com perspectivas sociais, os quais se estendem para a era de grandes transformações tecnológicas, sociais e políticas do século 20.

Um marco fundamental e ponto de inflexão entre os paradigmas liberal e social de comunicação, seus direitos e políticas é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que consolida a liberdade de expressão como um direito multifacetado e aberto o suficiente para fazer caber tanto noções liberais, negativa e positiva [2], quanto sociais da comunicação. É a partir daí e dos tratados subsequentes, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), que se torna possível consolidar a ideia de que cabe ao Estado intervir na comunicação social para garantir não só as liberdades de expressão e informação e suas inter-relações com outras liberdades individuais e coletivas, mas iguais condições de exercício dessas liberdades para públicos distintos e desiguais, ou seja, os princípios de igualdade, pluralidade e diversidade midiáticas.

Assim, a disputa entre os paradigmas liberal e social influencia leis como os Broadcasting Acts (Inglaterra, de 1977 a 1996) e os Communications Acts (EUA, 1934 a 1996), formando o campo da comunicação social como um espaço de usufruto por indivíduos e entes privados, mas também um bem público. E dada a limitação do espectro eletromagnético, os Estados passam a explorá-lo via concessões de serviços públicos, sobretudo a empresas privadas de mídia, além de entidades públicas e estatais. Mas o que prepondera é a sobreposição de interesses capitalistas e estatais em detrimento de espaços públicos de comunicação, apesar de algumas exceções, como nas legislações francesa, portuguesa e alemã, que constroem sistemas públicos mais fortes e menos dependentes do Estado e do poder econômico.

A legislação brasileira adota na prática o paradigma liberal de radiodifusão, com relações muito próximas entre Estado e mercado, em outras palavras, entre políticos e mídias, mesmo em governos autoritários, como na era Vargas e na ditadura civil-militar, o que gera um sistema muito concentrado e dependente do poder econômico.

O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62) e a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97) são exemplos desse modelo. Embora a Constituição de 1988 já apresente elementos do paradigma social dentro do capítulo sobre comunicação social (artigos 220-224), as pressões do paradigma liberal, fortalecidas pela doutrina do neoliberalismo e somadas ao patrimonialismo brasileiro, dificultam a criação de legislações específicas capazes de garantir igualdade, pluralidade, diversidade e equilíbrio entre os sistemas público, estatal e comercial, além da fiscalização desses princípios.

Na primeira década dos anos 2000, pela força da eleição de governos mais à esquerda na América Latina, surge uma onda de legislações mais sociais de comunicação, como na Argentina e no Uruguai, ainda que com muita resistência das elites econômicas e contrapropaganda dos veículos estabelecidos, principalmente diante da previsão de divisão equitativa de outorgas para veículos estatais, comerciais e públicos ou não governamentais.

No Brasil, embora a Lei da TV Paga de 2011 tenha trazido importantes avanços no paradigma social, dois outros projetos mais gerais nessa linha são gestados, embora sem sucesso: o Projeto de Lei da Mídia Democrática, coordenado pelo Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC), e um projeto preliminar liderado por Franklin Martins [3], ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Nesse período são também promulgadas no Ocidente outras leis fundamentais para o campo, como as leis de acesso à informação, além de movimentos nacionais e internacionais para a governança e a regulação da internet, cujos primeiros diplomas, como o Marco Civil da Internet brasileiro, também refletem o embate entre os paradigmas liberal e social, enquanto abrem espaço para uma perspectiva de regulação convergente [4], capaz de garantir os direitos à liberdade de expressão independentemente de meios e fronteiras.

Mas é a partir do movimento do constitucionalismo plurinacional e decolonial de países como Equador e Bolívia que começamos a vislumbrar alguns elementos de um paradigma que se avizinha no horizonte, o paradigma ambiental e decolonial de comunicação social e dos direitos de comunicação.

Esse paradigma incorpora elementos dos paradigmas liberal e social, garantindo liberdade de expressão e de imprensa, e limitando abusos dessas liberdades e as pressões dos poderes econômico e estatais sobre a comunicação social. Mas além de promover mais igualdade e diversidade, valorizando canais de comunicação intercultural, propõe aproximações com a área do meio ambiente ao determinar, por exemplo, que os serviços se deem em “harmonia com a legislação ambiental e com os direitos da Mãe-Terra” (artigo 5o, 9, Lei 164/11, Bolívia).

Nesse paradigma, podemos começar a pensar a comunicação social não somente como bem público, mas como uma dimensão fundante da vida, o que implica entender que, do mesmo modo que a natureza pode ter direitos e proteções como um sujeito, a comunicação social também pode. É também um paradigma decolonial, pois permite romper com a dicotomia sujeito-objeto herdada da cultura europeia e anglo-saxã, que pressupõe um sujeito universal enviesado e que leva a relações instrumentais, desiguais e predatórias com a natureza e outros sujeitos.

É esse paradigma que nos permite, ao final, levantar a seguinte questão: os regimes de comunicação em que vivemos hoje favorecem de fato uma manutenção harmônica da vida individual, social e planetária? Para responder a essa questão talvez não precisemos ir muito além do jardim, senão nutrir com ele um outro olhar.

[1] Habermas, J. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Trad. Denilson Werle. São Paulo: Unesp, 2014.

[2] Berlin, I. Two Concepts of Liberty. In. Id. Four Essays on Liberty. Oxford University, 1969.

[3] Ver Vannuchi, C. Direito Humano à Comunicação: fundamentos para um novo paradigma da regulação dos meios no Brasil. Tese de Doutorado. Escola de Comunicações e Artes da USP, 2020.

[4] Blotta, V. Francischelli, G. Convergência midiática e regulação convergente: dinâmicas e políticas do audiovisual da internet. v. 22 n. 3 (2020): Revista Eptic – vol. 22, nº 3, set.-dez, 2020.

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