STJ, créditos do proprietário fiduciário e a recuperação judicial

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A propriedade fiduciária surgiu no Brasil com o advento da Lei 4.728/65, pretendendo o desenvolvimento do mercado de capitais. Segundo a lei vigente, é fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor[1]. Com a constituição da propriedade fiduciária, mediante contrato, público ou particular devidamente registrado, dá-se o desdobramento da posse, tornando o devedor possuidor direto da coisa.

Resolúvel, como se sabe, é aquilo que pode ser extinto pelo advento da condição (evento futuro e incerto) ou do termo (evento futuro e certo). A resolutividade da propriedade fiduciária, na lição de Bevillaqua, diz respeito à duração do direito e não aos seus elementos constitutivos. Por isso, devem estar presentes no instrumento contratual as cláusulas que tornam a propriedade resolúvel e, uma vez operada a condição ou termo nele previsto, a propriedade retornará ao antigo proprietário ou será transferida a terceiro beneficiário, caso assim conste do instrumento contratual.

Diante da proteção contratual conferida pelo bem dado em garantia, os contratos fiduciários tornaram-se elemento comum nas dinâmicas comerciais, operando como instrumento facilitador dos acordos empresariais. Contudo, não raramente, nem mesmo tal garantia concedida é suficiente para abonar integralmente o crédito existente, razão pela qual, mister se faz, o entendimento acerca da classificação do crédito quando o devedor se torna insolvente.

O parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05, a Lei de Recuperação Empresarial e Falência (LREF), previu que o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não terá seu crédito submetido aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais. Desde a entrada em vigor, apesar de sua aparente claridade, o dispositivo tem sido objeto de discussões na doutrina e jurisprudência de todo o país, acerca da extensão da proteção concedida pela norma aos credores com garantias fiduciárias, mais ainda o que ocorre quando o crédito com garantia fiduciária é titularizado por terceiro não integrante do pedido de recuperação judicial: permanece ou não a extraconcursalidade? Eis o objetivo do presente artigo.

Antes da reforma da LREF, promovida pela Lei 14.112/20, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendia que não apenas os bens alienados fiduciariamente enquadrar-se-iam na exceção constante do parágrafo 3º do artigo 49 da LREF, mas também os próprios contratos com tais garantias não deveriam ser atingidos pela recuperação judicial[2], consoante decisão proferida pela 3ª Turma do STJ, que deu provimento a Recurso Especial interposto por credor contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e afastou da recuperação judicial o crédito garantido por propriedade fiduciária. A decisão originária recorrida estabeleceu, por unanimidade, como concursal – de natureza quirografária, o crédito garantido por alienação fiduciária cujo fiduciante não constava no polo ativo do pedido de recuperação judicial, considerando que o privilegio era devido, tão somente, em relação ao prestador da garantia real.

O TJSP continuou adotando tal posição apesar de rechaçada pelos Tribunais Superiores, inclusive através do Grupo de Câmaras de Direito Empresarial (GCDE) que aprovou, em 18.2.2019, o Enunciado VI, segundo o qual: “Inaplicável o disposto no artigo 49 §3º da Lei 11.101/05 ao crédito com garantia prestada por terceiro, que se submete ao regime recuperacional, sem prejuízo do exercício, pelo credor, de seu direito contra o terceiro garantidor”. Assim, para o GCDE, o crédito do credor com garantia fiduciária deve ser submetido ao procedimento da recuperação judicial, independentemente da ação, deste mesmo credor, contra o terceiro que concedeu a garantia. Mesmo após a reforma da LREF, o GCDE manteve o Enunciado, sob a justificativa de que a questão merecia “sofrer uma melhor definição pelo STJ”.

Em setembro de 2021, o STJ manifestou-se sobre o tema, reproduzindo o seu entendimento anterior, ao decidir que o crédito do proprietário fiduciário não se submete aos efeitos da recuperação judicial, não importando se o bem dado em garantia provém do patrimônio da recuperanda ou de terceiros[3].

Em novembro de 2021, a 3ª Turma foi além, ao delimitar expressamente a extensão da extraconcursalidade, referente ao tratamento da garantia de terceiro na recuperação judicial. Segundo o acórdão, os credores fiduciários estão excluídos dos efeitos da recuperação judicial somente em relação ao montante alcançado pelos bens alienados em garantia. Assim, quando o avalizado é o devedor principal, o avalista deve ser tratado como se devedor principal fosse, considerando a extraconcursalidade diretamente ligada à propriedade fiduciária. Em outras palavras, o STJ afirmou que, se a avalista está em recuperação judicial, e os bens alienados em garantia não lhes pertencem, não pode ser expropriados outros bens de sua titularidade, pois devem servir ao pagamento de todos os credores[4].

Na mesma data de julgamento, novamente a 3ª Turma, desta feita sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, concluiu que o fato do bem imóvel alienado fiduciariamente não integrar o acervo patrimonial da devedora não afasta a regra disposta no parágrafo 3º do artigo 49 da LREF, sob o argumento de que “o crédito detido em face da recuperanda pelo titular da posição de proprietário fiduciário de bem móvel ou imóvel não se submete aos efeitos do processo de soerguimento, prevalecendo o direito de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais pactuadas”[5].

Nos termos da decisão, o legislador não delimitou o alcance da regra em questão apenas aos bens alienados fiduciariamente originários do acervo patrimonial da própria sociedade em recuperação, tendo estipulado exclusivamente que o crédito de quem é “titular da posição de proprietário fiduciário” não se sujeita aos efeitos da recuperação. Para a relatora, é irrelevante a identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o objeto da garantia ou com a própria sociedade recuperanda.

O acordão ressaltou – e neste ponto se aproxima da decisão proferida no bojo do Resp 1953180, que o que deve ser afastado dos efeitos da recuperação judicial não é o montante integral previsto no contrato garantido pela alienação fiduciária, mas, sim, o valor equivalente ao bem cuja propriedade (fiduciária) fora transferida. Eventual saldo devedor excedente deve ser habilitado na classe dos créditos quirografários, caso não possua outra garantia.

Pelo exposto, conclui-se que as decisões recentes apresentam um indicativo de sedimentação da jurisprudência acerca da extensão do parágrafo terceiro do artigo 49 da LREF para alcançar os créditos do proprietário fiduciária garantido por terceiro. Contudo, somente acompanhando as futuras decisões do Superior Tribunal de Justiça poderemos afirmar, efetivamente, que a extraconcursalidade limitar-se-á, em todos os casos, ao valor do bem garantidor.

[1] Artigo 1.361 da Lei n. 10. 406/02 (Código Civil)

[2] Conforme, exemplificativamente, consta de acordão proferido no REsp 1549529/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 18/10/2016.

[3] STJ, REsp. 938.706/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14/09/2021.

[4] STJ, REsp 1953180/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25/11/2021.

[5] STJ, REsp. 938.706/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14/09/2021.

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