Uma agenda em (re)configuração: as tendências na regulação da tecnologia em 2023

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O papel que atores burocráticos estratégicos, em competição ou coordenação, desempenham na formulação de políticas públicas, seu caráter e conteúdo, é de notória relevância no processo político. Apesar dos muitos debates, processos legislativos e regulamentares já iniciados, os resultados eleitorais podem afetar de maneira significativa o desenvolvimento da regulação da tecnologia nos próximos anos.

O ano de 2022 foi marcado pela Emenda Constitucional 115/2022, que inseriu o direito à proteção de dados pessoais no artigo 5º da Constituição Federal; pela lei que transformou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em autarquia especial; pela conclusão do relatório da comissão de juristas encarregada de elaborar uma proposta de regulação da inteligência artificial. Foi marcado também por um acirrado debate sobre responsabilidade do intermediário e regulação do conteúdo online nos motes da MP 1068/21 e, em frontal contradição com esta, do aprofundamento da cooperação de provedores de aplicações com as autoridades brasileiras no período eleitoral.   

Compartilhamos nesse artigo alguns elementos que ajudam a compreender o processo de definição da agenda para temas de tecnologia, isto é, o processo de “seleção” de algumas questões e priorização de certos conflitos, que terão a atenção de tomadores de decisão. Observar a definição da agenda, neste momento de pré-decisão, é fundamental para entender as alternativas regulatórias consideradas e a própria regulação resultante (COBB and ELDER, 1971).  

Regulação de plataformas digitais 

A regulação de plataformas digitais também já estava no horizonte na legislatura/governo anterior. O PL 2630/2020, apesar de sempre estar associado a certa urgência, há dois anos tramita no Congresso Nacional. Há, no entanto, novos atores e novas alternativas regulatórias em cena. No que diz respeito ao tema específico da responsabilidade do intermediário e regulação do conteúdo online, em sentido oposto ao governo anterior, é possível observar, em substituição a alternativas que pretendiam limitar ou coibir a restrição da expressão online, há manifestações indicando disposição para promover a moderação de conteúdo, alterando possivelmente disposições do MCI. Os atos antidemocráticos ocorridos em Brasília em 8 de janeiro intensificaram a preocupação de atores burocráticos com a intersecção entre a desinformação e o ataque às instituições democráticas.  

O Ministério da Justiça e Segurança Pública chegou a sinalizar que enviaria ao Congresso Federal o que chamou de “Pacote da Democracia”, um conjunto de propostas que disciplinaria o monitoramento e exclusão de conteúdos falsos e criminosos por plataformas digitais. Cabe mencionar que o debate relacionado ao regime de responsabilidade do intermediário não é particularidade brasileira. Desenvolve-se atualmente nos EUA um intenso debate legislativo e também judicial sobre a Seção 230 do Communications Decency Act (CDA).  

O pacote da Democracia foi repensado, após resistências. A expansão da questão, com o envolvimento de outros grupos, inclusive no Congresso Nacional, teve como resultado a reformulação da estratégia, e a possível concentração de atenções no PL das Fake News (PL 2630/2020). Aliás, recentemente, em 22 de fevereiro, a presidência enviou à Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) uma carta em defesa da regulação das plataformas digitais a fim de combater a desinformação. A atenção do governo à questão também se manifesta na quantidade de instâncias a quem foi incumbida a incidência na pauta, como a Secretaria de Políticas Digitais, a Assessoria especial de direitos digitais e, indicando o interesse do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania em tomar parte no debate, o Grupo de trabalho para combater discurso de ódio e extremismo.  

Para além dessas questões, há uma outra frente regulatória aberta, já que, em novembro passado, o deputado federal João Maia (PL-RN) apresentou o PL 2.768/2022. O projeto, como comentamos nesta coluna, apresenta um modelo que atribui amplas competências para regular os operadores de plataformas digitais à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com poucos parâmetros para o desenvolvimento normativo infralegal, pouca clareza sobre obrigações das plataformas e mesmo âmbito de incidência. O esforço também guarda algum paralelo – e muitas dissonâncias – com tendências regulatórias internacionais. Busca-se, por exemplo, definir uma categoria semelhante aos gatekeepers do DMA, a partir de um critério exclusivamente financeiro, e sem atenção às peculiaridades dos diferentes modelos de negócio.   

Privacidade e proteção de dados 

A ANPD já publicou sua Agenda Regulatória para o biênio 2023-2024, informando suas ações regulatórias prioritárias para o período. Alguns dos temas de maior destaque são o regulamento de dosimetria e aplicação de sanções administrativas, que se encontra em fase final de elaboração. À conclusão desse processo, segundo manifestações de componentes da Autoridade, está associado o início efetivo da atividade sancionatória da Autoridade.  

A abertura de novas vagas para servidores e empregados públicos, e a colaboração temporária em atividades administrativas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública indicam também o esforço de fortalecimento institucional ANPD.  

Inteligência artificial 

Uma última frente que abordamos é a regulação da inteligência artificial. Em 6 de dezembro de 2022, a Comissão de Juristas instituída pelo Senado para contribuir com o projeto de regulação da inteligência artificial (IA) divulgou o relatório final de seus trabalhos. Desde a entrega do relatório, não houve novas movimentações. O debate, entretanto, pode ganhar tração com o desenvolvimento de regulações de IA ao redor do mundo (com destaque para o AI Act, na União Europeia, e o Blueprint for an AI Bill of Rights nos EUA), e com a ascensão de ferramentas como o ChatGPT, que vem protagonizando as notícias sobre o universo da tecnologia nas últimas semanas.   

Vale dizer finalmente que as regras que incidem, ou deixam de incidir, sobre estes temas também estão em permanente debate em instâncias sancionatórias, administrativas ou judiciais. TSE, ANPD e Cade, por exemplo, tomam parte na definição de contornos das regras efetivamente aplicáveis aos fenômenos em discussão acima. Acompanhá-los, e perscrutar as respectivas agendas, também pode contribuir para ter clareza do que esperar em 2023 e nos anos seguintes.

COBB, ROGER W. E ELDER, C. D. The Politics of Agenda-Building: An Alternative Perspective for Modern Democratic Theory. Journal of Politics, v. 33, n. 4, pp. 892–915, 1971. 

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