Voto de qualidade no Carf: distância entre intenção e gesto

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Desde que foi anunciado, o retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem sido um dos assuntos mais debatidos entre tributaristas. Diversas opiniões abalizadas já foram publicadas e, em respeito à(o) leitor(a), tentaremos trazer pontos de vista novos, ou ao menos reunir de forma inédita alguns dos argumentos mais relevantes.

A MP nº 1.160 revogou o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, incluído em 2020 para estabelecer o desempate a favor do contribuinte nos julgamentos do Carf. Assim, prevê a retomada integral do “voto de qualidade”, que atribui aos Presidentes das turmas e câmaras do Tribunal, sempre conselheiros representantes do fisco, a palavra final quando houver empate.

Em coletiva de imprensa, o Ministério da Fazenda justificou a retomada do voto de qualidade no isolamento do Brasil em relação aos demais países do mundo quanto (i) ao modelo paritário do Carf, (ii) à regra de desempate pró-contribuinte e (iii) à impossibilidade de a Fazenda Nacional recorrer ao Poder Judiciário em caso de derrota.

Além disso, vinculou a regra de desempate pró-contribuinte (iv) a um prejuízo anual de R$60 bilhões aos cofres públicos e ao suposto refreamento dos julgamentos, que teria aumentado o estoque do Carf de R$ 600 bilhões para R$ 1,2 trilhão.

Em um cenário de descontrole das contas do governo anterior, as intenções do novo governo são justas e dão sinais positivos de responsabilidade fiscal.

O instrumento, porém, nos parece inadequado, por alguns motivos. Comecemos com um de ordem institucional: o Congresso Nacional aprovou a regra de desempate favorável aos contribuintes há menos de 3 anos, e a Câmara dos Deputados reiterou essa opção ao incluir uma nova regra, ainda mais ampla, na tramitação do PL 2.337/2021.

Segundo motivo: olhar para o Carf como um agente de arrecadação vai na contramão da sua própria natureza e dos consensos alcançados nos debates entre academia, sociedade e administrações tributárias.

Outra questão de diálogo institucional é relevante: a regra de desempate pró-contribuinte teve sua constitucionalidade reconhecida por Ministros do Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.399, 6.403 e 6.415, ainda pendentes de conclusão de julgamento. Nesta oportunidade, inclusive, o ministro Luís Roberto Barroso expôs sua preocupação com a duvidosa constitucionalidade da regra do voto de qualidade, agora restituída pela MP 1.160/2023.

Nessas ADIs, o ministro Alexandre de Moraes expressou preocupação com a alteração da regra de julgamentos administrativos com o fim indireto de aumentar a arrecadação, pois “presumir que a alteração de julgamento vai alterar receita” significaria “presumir também que o julgamento já está decidido antes de começar.”.

Assim, transformar o critério de desempate em instrumento para aumentar a arrecadação federal poderá levar a desvio de finalidade e à indevida presunção de parcialidade dos conselheiros representantes do fisco, que, sob essa premissa, deverão usar o voto de qualidade para beneficiar a União.

Essa pressão, aliada a mandatos curtos e cuja renovação depende da chancela da entidade representativa, poderá ainda acarretar indevido constrangimento sobre os conselheiros representantes do fisco, que deveriam ter sua autonomia garantida. Como o governo justificou a medida em conclusões do TCU, registramos que esse risco de captura dos mandatos foi apontado por TCU e CGU no relatório nº 201504306.

Prevalecendo essa lógica, a medida pode acarretar a perda de credibilidade do próprio Carf, transformando-o em um tribunal de passagem.

A volta do voto de qualidade se revela incompatível também com a pretendida redução do contencioso. A medida, associada a uma crescente percepção de parcialidade e pressão arrecadatória pela Receita Federal, provavelmente induzirá contribuintes a judicializarem os casos objeto de empate no Carf, desaguando o estoque de litígios no Poder Judiciário, que já conta com uma taxa de congestionamento de 74,2%[1].

Como consequência, a retomada do voto de qualidade também poderá aumentar os custos para a União e os contribuintes, que correrão os riscos da condenação sucumbencial. Troca-se o escaninho do contencioso, mas agora para um bem mais custoso para a sociedade.

Ainda sobre a relação entre Carf e Poder Judiciário, é importante esclarecer que o critério de desempate pró-contribuinte não permite que o CARF altere o entendimento consolidado em precedentes vinculantes. Pelo contrário: o próprio Regimento Interno do Tribunal administrativo obriga conselheiros a adotarem teses fixadas judicialmente, sob pena de perda de mandato.

Exemplo digno de menção é a tese sobre a cessação dos efeitos da coisa julgada, mencionada para afirmar que o Carf estaria favorecendo os contribuintes de forma contrária ao entendimento dos Tribunais Superiores[2]. A afirmação de que o STF caminha seu julgamento em direção oposta, contudo, desconsidera que o tema já foi julgado, em repetitivo (vinculante, portanto,), pelo STJ[3]. Ou seja, o Carf estaria justamente adotando o entendimento vinculante prevalecente.

No que diz respeito ao alegado aumento do estoque durante a vigência da regra de desempate favorável aos contribuintes, as justificativas para o retorno do voto de qualidade desconsideram elementos relevantes que impactaram o Carf.

Primeiro, o movimento paredista dos auditores da Receita Federal, que suspendeu as sessões de julgamento do Tribunal por 8 meses de 2021 e 2022.

Segundo, as paralisações e restrições nos julgamentos como reflexos da pandemia, que até abril de 2022 ficaram restritos a processos com valores máximos de até R$36 milhões.

Terceiro, a análise da série histórica de evolução do estoque do Carf demonstra que, de 2011 a 2016, quando vigente a regra de voto de qualidade (pró-fisco), o valor do acervo mais que dobrou, saindo de R$ 303,3 bilhões para R$ 633,6 bilhões. Esse período apresentou alguns dos maiores picos de aumento da série, indicando que a flutuação de estoque não se relaciona com o voto de qualidade ou com a regra de desempate pró-contribuinte.

Quanto à afirmação de que processos deixaram de ser pautados em razão da regra benéfica aos contribuintes[4], convém refletir se tal gestão é digna de aplausos ou críticas.

Com relação ao suposto prejuízo de R$ 60 bilhões/ano aos cofres públicos, é desejável, para fins de transparência, a divulgação das fontes e premissas que apoiaram o cálculo da estimativa, o que, mesmo com a divulgação da Exposição de Motivos após a publicação da MP, ainda não ocorreu.

Sabe-se que o número foi inicialmente mencionado no relatório do acórdão nº 336/2021, do Tribunal de Contas da União, mas as fontes e a metodologia de cálculo dessa estimativa não foram divulgadas.

Por outro lado, os dados disponibilizados pelo próprio Carf em seu Relatório de Dados Abertos de 2022 parecem apontar para outra direção.

Ao analisar os tipos de votação do Carf entre 2017 e 2022 (unânime, maioria, voto de qualidade ou regra de desempate pró-contribuinte), verifica-se que apenas 1,9% dos processos julgados em 2022 foram submetidos à regra pró-contribuinte.

Esse número é inferior até mesmo ao de decisões proferidas em 2022 por voto de qualidade (3,4%), seguindo a sistemática excepcionalmente mantida pela Portaria ME nº 260/2020 para processos de compensação, análise de matéria processual, responsabilidade solidária, embargos de declaração e conversões em diligência. Essa constatação é repetida em 2021 (2,7% x 1,6%) e em 2020 (1,9% x 0,4%).

Sobre a suposta divergência com a experiência internacional, como já levantado pelo Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, a comparação quanto à paridade dos tribunais administrativos não pode ser feita de forma isolada. Convém considerar todo o sistema de elaboração das normas tributárias, de constituição e de julgamento dos créditos tributários, aplicação de penalidades, além dos instrumentos de resolução alternativa de conflitos.

A prevalência desses últimos, inclusive, foi identificada pela pesquisa ao analisar a experiência de outros 7 países, tendo o Brasil despontado como exceção à (boa) regra.

Já em outras jurisdições, como França e Chile, os tribunais são integrados por julgadores concursados. Outros países têm experiências bastante próximas à brasileira em termos de paridade da representação, como África do Sul e Dinamarca, que também contam com julgadores representantes da sociedade em seus órgãos de julgamento.

Ou seja, esses exemplos variados reforçam a necessidade de se analisar os diferentes modelos de acordo com o contexto de cada país.

A alteração das regras do jogo menos de 3 anos após a sua instituição aumenta a insegurança jurídica, além de violar a isonomia e, potencialmente, ocasionar lentidão processual, instabilidade e imprevisibilidade. Todos esses aspectos impactam negativamente a economia e a atração de investimentos ao país, que, já foi classificado pelo Centre for Business Taxation da Universidade de Oxford como o segundo sistema tributário mais inseguro dentre 21 países analisados.

Há anos a sociedade tem se dedicado a discutir medidas estruturais e mais efetivas para a simplificação do sistema tributário, a redução do contencioso, o estímulo à conformidade e a utilização de behavioral insights, todos com vistas a substituir um modelo exclusivamente punitivo por outro pautado na confiança e na relação cooperativa entre fisco e contribuinte.

É dizer: reserve-se a punição e a repressão aos maus contribuintes. Invista-se na cooperação e no diálogo para os bons, eles são muitos e esperam encontrar um Carf equilibrado, transparente e técnico.

Tais caminhos são mais adequados e perenes para a finalidade anunciada pelo Ministério da Fazenda, além de mais benéficos para o fortalecimento do Carf, órgão com papel central na garantia de segurança jurídica aos contribuintes diante de um sistema normativo tributário altamente complexo e mal estruturado.

Há distância entre intenção (redução do contencioso e aumento de arrecadação) e gesto (voto de qualidade). É preciso compatibilizar as boas intenções com reformas mais modernas. Evocando mais uma vez a música Fado tropical, que inspirou diversas passagens deste artigo: esta terra ainda vai cumprir seu ideal.

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[1] Fonte: CNJ, Justiça em Números, 2022.

[2] A afirmação consta no artigo Carf, voto de desempate e justiça fiscal, de autoria de Robinson Barreirinhas (Secretário especial da Receita Federal) e Gustavo Caldas (Subprocurador-geral da Fazenda Nacional), disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/01/carf-voto-de-desempate-e-justica-fiscal.shtml, acessado em 25/01/2023.

[3] REsp nº 1.118.893, rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima.

[4] A afirmação consta em entrevista concedida pelo Secretário Especial da Receita Federal do Brasil, Robinson Barreirinhas, disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/01/secretario-da-receita-estima-impacto-de-r-60-bi-com-mudanca-no-carf.ghtml, acessado em 25/01/2023.

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